Antônio Flávio Pierucci

O sociólogo da religião não pode continuar pensando que se pode fazer sociologia propriamente dita sem a crítica da “cultura capitalista”, que passa pela crítica da economia capitalista.
Quando uma igreja visa à maximização dos lucros e ensina seus quadros a fazerem o mesmo por ela e também para si mesmos, e exorta os conversos e seguidores a fazerem o mesmo, é sinal de que a lógica da esfera econômica colonizou a lógica da esfera religiosa.
Com isso, a religião enfraquece sua principal conquista alcançada com a modernidade, que foi a autonomização das esferas da cultura, como ensinou Max Weber [1881-1961]. Volta atrás na história.
Muitos sociólogos de hoje veem acertadamente a religião como mercado -mercado de bens de salvação-, mas já é mais que isso: há outras metas a alcançar, inclusive as de conteúdo material. No mundo ocidental contemporâneo, isto é, na sociedade secularizada, há grande competição entre diferentes religiões, e o crescimento de umas e outras depende do declínio de pelo menos alguma outra, em número de seguidores, num jogo de soma zero, evidentemente.
Desregulação
A dinamização recente da concorrência entre os diferentes produtores e vendedores religiosos -diferentes religiões, igrejas e outros grupos de culto institucionalizados- pode ser entendida como consequência histórica e em linha direta da desregulação republicana da esfera religiosa. Sobretudo na América Latina, tal processo significa a perda pelo catolicismo de sua reserva de mercado. Acabou-se o monopólio católico.
Com a possibilidade assim aberta de ativação acrescida de seus agentes num mercado religioso desmonopolizado, foram sendo alcançados pouco a pouco níveis mais exigentes de pluralismo religioso, de demarcação mais nítida da diferença religiosa e, por que não, de conflitividade multidirecional, por conta dos níveis mais altos de envolvimento reflexivo dos próprios agentes religiosos com a ideia mesma de competição religiosa legítima, “natural”.
Segue-se a crescente dinamização racionalizada da oferta dos bens de salvação que os profissionais da religião criam ou, cada vez mais, copiam uns dos outros, cuja distribuição reciclada administram sempre de olho na resposta dos muitos adversários.
Cresce mais quem faz melhores ofertas; criar novas necessidades religiosas é imperativo, regra do mercado. Nesse “métier”, vale apontar desde já, têm se esmerado os pentecostais e neopentecostais, mas não só. A febre é altamente contagiosa. É toda uma positividade de imagem proativa que termina por granjear mais prestígio e legitimidade social para as religiões ou religiosidades que melhor souberem vender seu peixe.
E, já que liberdade religiosa hoje em dia se pratica em chave de livre-concorrência, todos os profissionais religiosos responsáveis por esse burburinho são os primeiros a dizerem-se interessados (interessados por enquanto, é só o que por enquanto faz sentido) em mais e mais liberdade de crença, culto, expressão, propaganda e marketing. Assim como em mais isenção (quando não evasão) fiscal, “que ninguém é de ferro!”.
Lá na frente, os agentes da religião não passam de agentes econômicos, e as igrejas, de empresas. São, agora, também políticos, uma vez que tudo isso acarreta uma crescente necessidade, por parte das igrejas competitivas, de se fazerem representar no Parlamento, às vezes com partido próprio, de onde podem defender seus interesses com a segurança jurídica e econômica costurada na lei, que ajudam a criar ou a rejeitar.
Como resultado da desregulação, o que se tem é essa abundância de profissionais religiosos, que vemos, em inaudito ativismo, a suprir o mercado de novidades religiosas, serviços espirituais, bens simbólicos e os mais variados artigos de consumo, gerando, em decorrência, teores mais altos de participação religiosa na população, que produzem um aquecimento de todo um campo religioso, que se estrutura em moldes análogos aos de um mercado concorrencial.
Resulta que esses empreendedores religiosos aparecem -assim eles se apresentam na vida cotidiana- como se mergulhados até o pescoço numa inadiável disputa por recursos e oportunidades, por mais eficácia e sucesso na atração de novos consumidores e na fidelização dos já atraídos. Precisam, pois, de mais fundos econômicos, mais dinheiro e mais lucro para investir no negócio da religião.
Sociologia
Do lado dos sociólogos, para falar agora das coisas do sagrado, é necessário passar pela economia da coisa, mergulhada com certeza na cultura capitalista de uma sociedade irremediavelmente secularizada.
Uma sociedade que não precisa mais de Deus para se legitimar, se manter coesa, se governar e dar sentido à vida social, mas que, no âmbito dos indivíduos, consome e paga bem pelos serviços prestados em nome dele.
De modo tão descarado que o princípio de fidelidade dos homens, isto é, dos fiéis para com Deus, que sustentou a civilização judaico-cristã, e também a islâmica, desde as origens, agora tem sua direção invertida por essa nova cristandade que proclama que Deus é fiel, o fiel é Deus. Investimento seguro, vale dizer.

 

Fonte: Folha de São Paulo – Caderno Ilustríssima – 17/06/2012