É preciso saber sobre a velha Índia, sobre a colonização e a identidade, senão o curry desanda

Ai, fui me meter a ser mais profunda nas férias e ler alguma coisa devagar, prestando MUITA atenção, porque quem tem uma coluna semanal e trabalha em tempo integral tem que se interessar pelo último lançamento, dar uma espiada e pular para o próximo.

Como tenho uma visão um tanto distorcida do que sou capaz de ler, uma vez, quando precisei fazer uma crônica para a Folha sobre caça às baleias, comecei em Nantucket e acabei encontrando 14 livros sobre o assunto, não lidos. Estão aqui na cabeceira me espiando como a baleia branca do capitão Ahab. Podem me chamar de Ishmael.

Pensei, então, em combinar o divertimento com o trabalho. Como adoro comida indiana -sei fazer o que aprendi com a Mehta Ravindra, na casa dela, cozinhando para o marido e para os filhos- resolvi ler sobre a Índia. Sempre falo dos livros de culinária, como “The Raj at Table” (Faber & Faber), de David Burton, “A Taste of India” (Pan Books), da sempre interessante Madhur Jaffrey, e dezenas de outros. Mas nem só de livros de cozinha vive um cozinheiro, como todos sabem. É preciso saber sobre a velha Índia, sobre a colonização, sobre a identidade, sobre a estranheza, sobre a modernidade, senão o curry desanda.

Como gosto muito do V.S. Naipaul em “A Casa do Sr. Biswas”, resolvi reler seus romances. Concordo que não é uma boa escolha ler um cara que nem conhecia a Índia, mas é dele de quem gosto muito, desenraizado, de Trinidad e Tobago. Tem três livros sobre a Índia, de não ficção. Há uma nova biografia dele na qual continua o mesmo. Feio, autocentrado, implicante, mau, ranzinza, obsessivo, mas que me importa? Você começa a ler e vê que é um mestre, escreve bem demais.

Tira ouro de pedrisco. A certa altura de um desses livros, o Naipaul fala da cultura introspectiva de Gandhi. Parei e fui ler a autobiografia do Gandhi, esse que é o rei da comida e do jejum, das privações de coisas de que gosta por promessa à mãe, à religião, à moral e aos estudos de dietética. Um problema ser vegetariano na Inglaterra, pensou ele, então um menino de 17 anos. Mas não era. O vegetarianismo estava no auge da moda, pôde ler muito sobre o assunto, encontrar-se com vegetarianos combativos, escolher o modo de comer menos, mais barato e de acordo com suas convicções. Foi sempre o PROBLEMA, vida afora. Aí, podemos entender a comida vegetariana como opção religiosa e profunda. Acabou se tornando “conselheiro do comitê executivo da sociedade vegetariana inglesa”, o que, segundo ele, foi a iniciação modesta à sua vida futura.

Nas doenças da família, de um filho, da mulher, ele pensa e repensa e prefere deixar morrer a comer carne. Escapam vivos. Nas doenças dele, nem tanto. Depois de muito pensar, toma leite de cabra, porque a sua promessa era não tomar leite de vaca… Um pecadilho, do qual estava bem consciente.

Nessa caminhada de interrogação constante de qual seria a melhor comida para a alma e para o corpo, acaba comendo só frutas e nozes. Feliz por dar fim a essa faina que é a cozinha.

fonte: folha de sp