Aleida Guevara nega que regime mantenha presos políticos e diz não respeitar as ‘damas de branco’ oposicionistas
Médica afirma que as mudanças econômicas em curso na ilha podem modificar a consciência social da população
ELEONORA DE LUCENA
ENVIADA ESPECIAL AO RIO
Ela se declara apenas uma militante da base do Partido Comunista Cubano, mas carrega o sobrenome de um mito da esquerda. Aos 50 anos, a pediatra Aleida Guevara se ocupa em cuidar da memória do pai e faz uma defesa inflamada do modelo da ilha.
Nesta entrevista, ela expressa seu temor de que as reformas em curso na ilha -que permitiram a venda de imóveis e carros- afetem a consciência social da população. No Brasil para dar palestras, ela fala de política e da herança de Che Guevara.
Folha – Como vão as coisas em Cuba?
Aleida Guevara – Buscamos solucionar problemas. O Estado não pode seguir sustentando quem trabalha sem produzir. Quando perdemos o campo socialista europeu, Cuba sofreu uma crise brutal, e o Estado amparou todos por todo esse tempo. A situação da economia interna melhorou -logo, há possibilidades para que essas pessoas trabalhem independentemente.
Foi aberta a possibilidade da propriedade privada de imóveis e carros.
Digamos que não é propriedade privada. Se eu tivesse pago por um carro, era meu, mas eu não podia vendê-lo. Agora posso, legalmente.
Não acha que isso conflita com o princípio socialista?
Não. O Estado segue sendo socialista porque não há privatização nos grandes meios de produção. Nisso não se tocou e não se vai tocar. O povo cubano segue sendo dono de tudo o que se produz no país.
A questão não está em vender a tua casa ou o teu carro, o que é bom que possamos fazer livremente. A questão está em que agora há trabalhadores por conta própria. Esses vão buscar seu benefício pessoal. Meu temor pessoal como cidadã -não tenho nada a ver com a direção do governo cubano; sou uma médica- é que as pessoas que comecem a trabalhar para si mesmas percam um pouco a consciência social. O homem pensa segundo vive. Se você só vive interessado em melhorar sua casa, a vestimenta, em ter dinheiro no bolso, esquece que a escola infantil da esquina, dos seus filhos, precisa de uma mão de pintura.
Como a sra. responde à afirmação de que Cuba é uma ditadura?
É total falta de conhecimento da realidade cubana. Temos eleições populares, muito mais democráticas que as de qualquer outro país. O povo elege diretamente seus candidatos, desde a base.
Mas o partido é único.
O partido não tem nada que ver com as eleições. O partido é o dirigente. As eleições são de baixo, do povo.
Não há problema de renovação de lideranças?
O povo cubano conhece a sua gente. Querem que sigam dirigindo. Se fizeram bem até agora, por que mudar? Estamos seguros com Raúl.
Como justificar a oposição, os presos políticos?
Presos políticos são presos por ideias. Em Cuba, não existem. Há presos por ações contra o povo, como pôr veneno na água de uma escola, tentar incendiar a telefonia. É terrorismo. Há mercenários pagos por EUA e europeus por passar ao FBI informações que prejudicam o país.
E as damas de branco?
São uma vergonha para mim como mulher. O que pedem? Que se deixem livres assassinos, terroristas, pessoas que atacaram a economia de seu próprio povo, mercenários que se venderam aos interesses de EUA e Europa?
Por que não valorizam a sociedade que cuida da pessoa desde que nasce até o fim da vida? Onde a educação é gratuita, não importa se és dama de branco, preto ou verde? Não posso respeitá-las.
Há democracia em Cuba?
A democracia é o poder do povo. E um Estado de direitos para todos os cidadãos. Isso em Cuba existe. O que o povo diz é o que se faz. O povo tem sempre a última palavra.
O embargo não mudou com Obama?
O bloqueio. Os EUA têm o direito de embargar suas relações com Cuba. Não protestamos contra isso. Protestamos quando os EUA têm o propósito de que nenhum outro país comercialize livremente com Cuba. Isso é o bloqueio.
Acreditávamos que Obama teria outras perspectivas, mas nos equivocamos. Ele responde aos interesses da grande indústria. Prometeu que fecharia a base de Guantánamo e isso não ocorreu até agora. Seguem tendo presos ilegais em nosso território. Essa base é roubada de Cuba.
Há quem diga que a Primavera Árabe pode chegar a Cuba. A sra. teme isso?
É muito diferente. A Revolução Cubana é de base, do povo. No mundo árabe, não houve revoluções desde as bases. Hoje, há muita manipulação de grupos incomodados por falta de poder.
Como é lidar com o mito Che?
Mito, não. Quando se fala de Cristo, ele é muito distante do ser humano, não se sabe se existiu ou não. Che não pode se converter em um mito. Era um homem como qualquer um de nós. Isso é o que o faz bonito, completo: sendo humano, com todos os problemas e deficiências, soube ser um ser humano melhor. O que queremos é seguir esse exemplo de vida, de ação, de honestidade, de integridade.
A sra. quase não conviveu com ele.
Tinha quatro anos e meio quando ele partiu para o Congo. Lembro dos últimos momentos antes da viagem. Meu irmão Ernesto tinha só um mês. Tenho uma imagem de minha mãe, com meu irmão apoiado em seu ombro. Eu estou embaixo, olhando a cena. Meu pai está vestido como militar e tocando com uma mão muito grande a cabecinha do bebê.
Essa imagem sempre me ficou na retina. Sou mãe e me ponho a pensar naquele momento, quem sabe de despedida. Quanta preocupação ele poderia estar tendo com esse bebê, se quando crescer ele iria entender por que ele não estava. [Chora, tentando conter as lágrimas.]
E esse momento me faz pensar em meu pai com muito amor, com muita força. Era um homem capaz de amar com tanta ternura e, ao mesmo tempo, de seguir seu caminho, de saber que era mais útil noutro lugar. É o melhor exemplo de um verdadeiro homem e verdadeiro comunista: oferecer o melhor da sua vida apesar de si mesmo.
Depois, houve outro momento quando ele regressou do Congo, já disfarçado. Não sabia que era papai. Nessa noite eu caí, bati forte a cabeça. Ele me tomou nos seus braços, me protegeu. No fim, eu disse alto: mamãe, acho que esse homem está apaixonado por mim.
Deve ter sido muito duro para ele -não pôde me explicar porque me queria de maneira especial. Mas para mim foi ótimo. Quando soube que era meu pai, senti que me amava de uma maneira muito especial, e isso é bonito para qualquer filho.
Esse momento do disfarce está no filme de Steven Soderbergh. A sra. gostou do filme?
Não, porque não se vê meu pai como formador de homens. O filme de Walter Salles [Diários de Motocicleta] é muito melhor, mais real.
Como avalia a manutenção da memória sobre o seu pai?
Muitas coisas faltam. Uma das mais importantes é que não há publicações suficientes para os jovens. Fazê-las é um dos objetivos do Centro de Estudos Che Guevara.
Fonte: FOLHA.com