Gabriela, Cravo e Canela chega aos cinqüenta anos reeditado pela Companhia das Letras. Situado praticamente no meio da produção ficcional de Jorge Amado, adquiriu status mítico e arquetípico, com seus personagens espalhados inclusive pelo imaginário popular, conhecidos por quem nunca sequer abriu um livro na vida, através das suas adaptações e imitações.
Por isso, uma tentação muito forte numa releitura é a condescendência, uma vez que certos defeitos já eram gritantes até mesmo para uma visão adolescente (como era a minha ao me ocupar com o romance pela primeira vez, instigado pela adaptação para a tevê nos anos 1970): o texto repetitivo, repisando as mesmas informações várias e várias vezes; as imagens fáceis e preguiçosas (por exemplo, a visão das solteironas de Ilhéus como “aves noturnas paradas ante o átrio da pequena igreja”). E mais ainda: a seqüência Gabriela-Dona Flor-Teresa Batista-Tieta sempre despertou em certa parcela da crítica mais reserva do que entusiasmo, este último destinado a outros títulos do nosso mais popular escritor, como Terras do Sem-fim ou Tenda dos Milagres. Jorge Amado acabou sendo um tipo de avô querido, mas embaraçoso.
Uma revisão sem preconceitos de Gabriela, Cravo e Canela, porém, não deixa dúvidas: trata-se de um belíssimo e bem-realizado romance, principalmente na primeira parte, na superfície concentrada em dois dias da vida de Ilhéus, em 1925: no primeiro deles (que ocupa o grosso da narrativa nas primeiras 150 páginas), o sol ressurge após um preocupante período de chuvas intensas, que ameaçavam destruir a maior colheita de cacau da história; a cozinheira de Nacib, dono do bar Vesúvio, o abandona; um dos coronéis mais destacados da cidade mata a tiros sua esposa e o amante dela (o dentista da região); o navio que traz o exportador “forasteiro” Mundinho Falcão de volta à cidade onde ele está causando um rebuliço modernizador encalha na barra, e a retirante Gabriela, fugindo da miséria da seca, chega a Ilhéus.
É simplesmente notável a maneira como Amado articula todos esses fios da intriga, e ao mesmo tempo nos transporta para o passado violento da região, a época “dos barulhos”, na qual os coronéis se impuseram, tomando a terra e se valendo da jagunçagem. E como no Brasil tudo é muito facilmente esquecido, após vinte anos, já tudo “assentado”, parece que “sempre foi assim”, tanto que certos costumes parecem leis morais e bíblicas: é o que se declara quando Jesuíno Mendonça assassina a mulher, Sinhazinha (detalhes da morta colocam em funcionamento toda uma fábrica de imagens eróticas e fetiches, que correm paralelos ao horror do acontecido) e invoca a lei de que honra se lava com sangue.
Nessa primeira parte, o autor baiano vai além dos seus painéis anteriores da conquista da terra, como Terras do Sem-fim e São Jorge dos Ilhéus porque justapõe a normalidade do quotidiano ao épico histórico de uma forma mais abrangente e matizada. Todo o discurso sobre o “progresso” que se faz palavra corrente naquele ano de 1925 em Ilhéus, com seus entusiastas e opositores, mostra de forma cabal como essa noção vem sendo utilizada na mentalidade nacional: como moeda de mercado, como uma espécie de jagunçagem ideológica.
E quanto à falta de polimento da prosa amadiana, as repetições excessivas do texto? Até isso tem seu efeito encantatório, sua eficácia particular: Jorge Amado é mais adepto do prosa barriga de chope do que do prosa tanquinho. Vamos fazer, enfim,justiça ao nosso mais popular escritor,não pedindo a ele o que não pode dar.
Fonte: A TRIBUNA