Ele mesmo não se compreendia, às vezes. Não nascera para lamento e autocomiseração


Trecho do diário inédito de Juscelino Kubitschek: “12 de setembro de 1974 – Faço hoje, incrivelmente, 72 anos. Sinto-me espiritualmente com a idade de 30. Nenhuma ferrugem na alma nem na vontade.
As declarações e os sofrimentos da revolução não conseguiram quebrar a fibra íntima. Sinto-me ainda capaz de grandes aventuras, tais como Brasília. Esta graça Deus conferiu-me. Se não me permite ver o mundo num halo de esperança, também não o fechou nas trevas da desilusão.
Compreendo os homens. São seres que não atingiram ainda o status profetizado por Teilhard de Chardin -a igualdade com Deus. Estão numa escalada que exigirá ainda milênios ou bilênios para chegarem ao aperfeiçoamento. Sei, portanto perdoar as falhas. De vez em quando uma ingratidão mais forte desequilibra a nossa crença. Com o tempo a refazemos.
O dia foi absorvido por visitas. A notícia da presença de Juscelino Kubitschek já circulou pelo sertão. Até de 800 km vem gente me ver. Graças a Deus tenho este privilégio. A casa se encheu. Foi uma inauguração feliz -estaria eu alegre?”
A citação (e a dúvida) pertencem ao diário que Juscelino Kubitschek, a partir de 1970, começou a escrever. Datas nem sempre precisas, impressões, pequenos fatos do cotidiano que ele ia registrando com pressa, sem a forma definitiva e cuidadosa a que se habituara. Mais tarde -pensava ele- esses apontamentos serviriam para ajudá-lo a escrever o último volume de suas memórias, tendo como tema principal o seu demorado exílio.
A referência a Teilhard de Chardin se explica. Em 1973, JK fizera um cursilho, espécie de retiro espiritual que o laicato católico divulgava em todo o mundo. Consistia na formação de pequenos grupos heterogêneos que durante uma semana viviam em comunidade, repartindo o mesmo dormitório ascético, o mesmo refeitório frugal, só se dividindo por ocasião das palestras -em que prevaleciam as informações culturais de cada cursilhista.
Juscelino fora aconselhado por amigos a tentar a experiência. No fundo, sentia que prática do recolhimento encontrava nele certa nostalgia dos tempos de seminário, quando fazia habitualmente os retiros regulares.
Agora, depois de ter vivido toda uma vida, a intimidade com o mundo espiritual, o diálogo com a própria alma, parecia-lhe interessante. Foi durante o cursilho que começou a ler Teilhard de Chardin, autor em moda nos anos 60. Mas Juscelino jamais seria um místico, muito menos um asceta.
Daqueles dias de reclusão ficou-lhe, contudo, a ambivalência espiritual que justifica a interrogação final do trecho citado: estava feliz, mas estaria alegre? O certo, talvez, fosse o contrário: estava alegre, mas estaria feliz?
Contudo, naquele 12 de setembro de 1974 ele podia estar feliz e alegre. Inaugurava a casa que mandara construir na “Fazendinha JK”, alguns alqueires de terra em Luziânia, nas proximidades de Brasília.
Ao se despedir dos jornalistas, na véspera de entregar o governo da República a seu sucessor, Juscelino respondeu prontamente à pergunta “O que deseja ser depois de ter sido presidente?”: “Fazendeiro em Goiás”, respondera Juscelino.
Muitas águas, porém, se passaram em sua vida e na vida nacional, adiando aquele projeto. A esperança de retornar ao poder em 1965, a cassação do mandato de senador e dos direitos políticos em 1964, o longo exílio que tanto o maltratou, os inquéritos, a prisão, as calúnias, a ingratidão -enfim, como qualquer homem surpreendido pela reflexão, ele sentia que o destino armara suas tendas para fundar, nele, a “città dolente”.
Mas havia, em seu temperamento inquieto, um sangue buliçoso demais para aceitar apaticamente o sofrimento, a depressão. E, de repente, mesmo sem informação ou sem motivo, ele dava a volta por cima e se sentia alegre (ou feliz) pelo bom dia recebido de um estranho, pelo céu imenso que cobria de azul o chão áspero do cerrado.
Ele mesmo não se compreendia, às vezes. Não nascera para o lamento, a autocomiseração. Por pior que estivessem a barra e o berro lá fora, dentro de si encontrava o pretexto para continuar ele mesmo. Como poderia viver sem a sua própria companhia?

fonte: Folha de Sp