SÃO PAULO – Em Cannes, Walter Salles já havia dito – “Fiz alguns road movies e percebi, ao fazê-los, que quanto mais você se distancia das raízes, do ponto inicial, mais você ganha perspectiva sobre quem você é, de onde veio e, eventualmente, quem quer ser.” Na Estrada é o relato de uma amizade traída, rompida e eternizada por meio da arte. Antes do diretor brasileiro, muitos – norte-americanos – tentaram adaptar o livro. Quando se lançou ao projeto, Salles dispunha já de vários roteiros, mas eles podiam ser somente indicações do que fazer, ou evitar. Por complicadas questões de direitos, ele não podia utilizar nenhum.
O projeto patinava, até que Salles e seu colaborador no roteiro, José Rivera – que já adaptara Diários de Motocicleta – tiveram acesso a uma informação. O livro havia sido publicado de um jeito. Uma nova versão o abriu de forma diferente, com a morte do pai do narrador, Sal Paradise – que seria o próprio Kerouac, narrando uma viagem iniciática no fim dos anos 1940.
A morte, ou a busca do pai, a viagem iniciática são temas recorrentes na obra de Salles, e ele embarcou mais uma vez. “É uma história sobre amizade partida, mas é também o relato do processo de escrever um livro sobre esses personagens.” E embora Sal seja o narrador – e leia Céline e Proust, percebendo como a literatura pode nascer da experiência da vida -, a alma de Na Estrada é seu amigo Dean Moriarty, interpretado por Garrett Hedlund.
Com seu elenco jovem que inclui, como Marylou, a estrela da série Crepúsculo, Kristen Stewart, Na Estrada beneficia-se enormemente da intensidade da presença física e da sensibilidade à flor da pele de Hedlund. É um ator na tradição de Marlon Brando e James Dean. Arde na tela como uma chama. As melhores cenas passam por ele. Num determinado momento, estão os três na cama – Marylou, Sal (Sam Riley) e Dean. Sal deseja Marylou, mas também sente essa perturbação pelo amigo. Ficam a um triz de se beijar. Mais tarde, como um voyeur, Sal verá Dean sodomizar o personagem de Steve Buscemi. Uma expressão de desgosto passa pelo seu rosto. A amizade vai terminar ali, agravada pelo abandono do amigo, quando está doente, no México.
“Desgosto ou inveja?”, pergunta Walter Salles, agora numa entrevista realizada em São Paulo, e nisso toca num aspecto muito forte de Na Estrada – o homoerotismo. “Esses garotos não são homossexuais, mas estão rompendo normas, testando novas possibilidades de vida e relacionamento.” Dean vive segundo uma moral própria. Sal, mesmo na estrada, após a morte do pai, de alguma forma viverá sempre a necessidade de se destravar, e foi assim na vida com Jack Kerouac. O nome que ecoa no desfecho de Na Estrada – Dean Moriarty, Dean Moriarty, Dean Moriarty – expressa ao mesmo tempo a dor de uma perda e a recuperação, ou reificação da amizade por meio da arte.
Dean é inspirado em Neal Cassady, Viggo Mortensen, numa participação pequena mas decisiva, é Old Bull Lee, como Kerouac chama, ou identifica, William Burroughs. Na Estrada, o livro, virou a Bíblia da beat generation. Transgressores, contestadores por natureza. O que isso tem a ver com o Brasil? “Li o livro muito jovem, nos anos 1960, em plena ditadura militar brasileira e senti uma identificação muito forte com aqueles garotos que se rebelavam contra a autoridade”, diz Salles.
Kerouac contribuiu na sua formação. Ele agora retribui. O fato de Na Estrada ser sobre o processo da escrita de um livro cult – e da própria realização de um filme que foi difícil – não elimina a força. Ao frio distanciamento, superpõe-se a força. Depende do que o próprio espectador estiver disposto a colocar de si neste belo filme.