O que é possível fazer para que casos como o dos ciclistas atropelados no Sul por um motorista desequilibrado deixem de acontecer
Patrícia Diguê e Paula Rocha
Chama a ambulância, socorro, ajuda, alguém liga para a polícia!” Em desespero, ciclistas gritavam diante dos colegas estirados no chão, após um carro avançar sobre os participantes de uma manifestação por mais ciclovias em Porto Alegre, no dia 25 de fevereiro. As imagens chocantes do ato de fúria do funcionário público Ricardo Neis, 47 anos, acelerando o carro sobre as pessoas indefesas em suas bicicletas e fugindo, produziu uma onda de protestos pelo País na semana passada. A reivindicação é por providências para se combater uma das maiores causas de morte de brasileiros, o trânsito, e evitar que os “monstroristas”, apelido dado pelos ciclistas aos motoristas irresponsáveis e irracionais, transformem seus carros em armas nas vias públicas. A justificativa de Neis é risível: “Não tive alternativa. Eles me agrediram, tive de fazer isso.”
Uma semana antes do caso do Rio Grande do Sul, que deixou 16 pessoas feridas, outro episódio de monstruosidade no trânsito ganhou repercu ssão. Um motorista atropelou pelo menos 18 pessoas, entre elas uma grávida, que participavam de um bloco carnavalesco em Maceió (AL). Marcelo Santos Ferraz, 43 anos, não quis esperar o grupo passar e jogou o veículo sobre os participantes. “Nas mãos de indivíduos que têm uma natureza agressiva e não evoluíram adequadamente do ponto de vista emocional, o carro vira uma bomba-relógio prestes a explodir”, explica a professora de psicologia das Relações Humanas da Universidade de São Paulo (USP), Sueli Damergian. Esse traço de personalidade, aliado ao sentimento de impunidade, contribui para que haja tantas mortes no trânsito no País. “Se o indivíduo não tem uma interdição interna, ou seja, de sentir culpa por ferir o próximo, ele tem que saber que haverá uma punição externa, tem que ter medo de ser punido pela lei”, explica Sueli. Um caso emblemático de impunidade é o do ex-jogador de futebol Edmundo, responsável pela morte de três pessoas no Rio de Janeiro há 16 anos, até hoje sem punição (leia quadro).
Mas não foi por falta de lei que o ex-atleta está até hoje impune. A legislação de trânsito brasileira é considerada moderna e completa. Quem mata alguém nas vias do País pode ficar preso por até 20 anos, por homicídio com intenção. Sem falar nas penas cíveis, com possibilidade de pagamento de pensão vitalícia às vítimas, e as administrativas, com a cassação da carteira de habilitação. “Nossa lei de trânsito não é branda. Por isso, a solução não é aumentar a pena, mas fazer cumprir o que já está previsto”, afirma o professor de direito civil da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Ragner Limongeli Vianna. Um caso em Guaraciaba do Norte (CE), no dia 28 de fevereiro, é um exemplo de tragédia resultante da irresponsabilidade de alguns motoristas diante de uma lei que, na prática, não é aplicada. Nove pessoas morreram quando voltavam de uma missa caminhando por uma estrada sem acostamento. Elas foram atingidas por um veículo que vinha na contramão, conduzido pelo “monstrorista” Cícero Lopes de Oliveira, 32 anos, que foi detido.
Antes de discutir a legislação, porém, Vianna ressalta que só o medo da aplicação da pena também não é suficiente. “O primeiro passo para uma solução social é evitar que o acidente aconteça. É educar as pessoas a respeitar as regras de trânsito, em vez de produzir medidas vingativas”, defende. É da mesma opinião o professor de engenharia de transporte da Escola Politécnica da USP, Cláudio Barbieri da Cunha. “Vejo nas ruas que, assim como os motoristas não respeitam os ciclistas, os ciclistas também não respeitam os pedestres”, comenta. Além da falta de educação e respeito no trânsito, ele também critica a ineficiência da engenharia de tráfego nos grandes centros. “Nossa engenharia adota soluções improvisadas e elas acabam criando conflitos, virando pontos negros de acidentes.” Enquanto não ocorrem as mudanças necessárias, a saída é tentar dividir de forma pacífica os espaços comuns nas ruas. Em relação aos bárbaros do trânsito, a recomendação dos psicólogos é unânime: nunca responder às provocações, para não correr o risco de entrar nas próximas estatísticas de vítimas dessa guerra urbana.
Fonte: ISTOÉ