A fama artística de Ai Weiwei o protegeu até que suas críticas acabaram cansando o regime chinês

Salman Rushdie, do The New York Times – O Estado de S.Paulo

O grande Turbine Hall da Tate Modern, em Londres, uma antiga usina de eletricidade, é um espaço difícil para um artista encher com autoridade. Sua imensidão pode apequenar as imaginações de todos à exceção de uma tribo seleta de artistas modernos que compreende os mistérios da escala, de como dizer alguma coisa interessante quando se tem de dizer algo realmente grande. A aranha gigante de Louise Bourgeois um dia ocupou ameaçadora esse espaço; Marsyas, de Anish Kapor, uma enorme forma oca em forma de trombeta feita de uma substância esticada que sugeria uma pele esfolada, triunfou majestosamente sobre ele.

Em outubro, o artista chinês Ai Weiwei cobriu o chão com suas Semente s de Girassol: 100 milhões de minúsculos objetos de porcelana, feitos à mão por mestres artesãos, não havendo dois idênticos. A instalação era um tapete de vida, profuso, inexplicável e, no melhor sentido surrealista, estranho. As sementes eram para se caminhar em cima, mas uma nova estranheza se seguiu. Descobriu-se que quando pisadas elas exalavam uma fina poeira que poderia danificar os pulmões. Essas representações simbólicas de vida poderiam ser perigosas para o vivente. A exposição foi cercada com um cordão e os visitantes tiveram de caminhar cuidadosamente em torno do perímetro.

A arte pode ser perigosa. Com muita frequência o renome artístico se provou perigoso para os próprios artistas. A obra de Ai não é polêmica – ela tende para o misterioso. Mas a imensa preeminência de Ali como artista (ele foi um consultor de projeto para o Ninho de Pássaro da Olimpíada e classificado em 13º lugar na lista da revista Art Review das cem figuras mais influentes em arte) lhe permitiu assumir a defesa em casos de direitos humanos e atrair atenção para as respostas muitas vezes inadequadas da China a desastres (como o sofrimento das vítimas infantis do terremoto de 2008 em Sichuan). As autoridades já o haviam constrangido e atormentado antes, mas agora elas partiram para uma nova ofensiva.

Em 4 de abril, Ai foi preso pelas autoridades chinesas quando tentava embarcar para Hong Kong. Seu estúdio foi invadido e computadores e outros itens, retirados. Desde então, o regime permitiu que indícios de seus “crimes” – evasão fiscal, pornografia – fossem publicados. Essas acusações não são críveis para quemo conhecem. Tudo indica que o regime, irritado com a franqueza de seu mais célebre exportador de arte, cuja fama o protegeu até agora, decidiu silenciá-lo de maneira brutal.

O desaparecimento é agravado por relatórios de que Ai começou a “confessar”. Sua libertação é uma questão de extrema urgência e os governos do mundo livre têm um claro dever quanto a isso.

Ai não é o único artista chinês em apuros. O escritor Liao Yiwu não pôde viajar aos EUA para participar do Pen World Voices Festival of International Literature e teme-se que ele possa ser o próximo alvo do governo. Entre outros alvos estão Ye Du, Teng Biao e Liu Xianbin – condenado à prisão em março por incitação à subversão, a mesma acusação assacada contra o Prêmio Nobel da Paz Liu Xiaobo, que cumpre pena de 11 anos.

As vidas de artistas são mais frágeis que suas criações. O poeta Ovídio foi exilado por Augusto para um “buraco” à margem do Mar Negro chamado Tomis, mas sua poesia sobreviveu ao Império Romano. Osip Mandelstam morreu num campo de trabalho stalinista, mas sua poesia sobreviveu à União Soviética. Federico García Lorca foi morto por sequazes do generalíssimo Francisco Franco da Espanha, mas sua poesia sobreviveu ao regime tirânico.

Talvez apostemos na arte para vencer tiranos. É pelos artistas mundiais, particularmente os corajosos o bastante para se erguer contra o autoritarismo, que devemos temer, e por cuja segurança precisamos lutar.

Nem todos os escritores ou artistas buscam ou realizam devidamente um papel público, e os que o fazem se arriscam ao opróbrio e ao escárnio, mesmo em sociedades livres. Susan Sontag, uma comentarista do conflito bósnio que dizia o que pensava, foi achincalhada por às vezes “falar como se fosse dona” do tema. As tiradas de Harold Pinter contra a política externa americana e seu “socialismo champanhe” foram objeto de muita zombaria. A visibilidade de Günter Grass como um intelectual público e flagelo de governantes da Alemanha causou um certo shadenfreude (sensação de prazer com a desgraça de pessoas invejadas) quando veio à luz que ele havia ocultado seu breve serviço nas Waffen-SS como conscrito no fim da 2º Guerra. A amizade de Gabriel García Márquez com Fidel Castro e o companheirismo de Graham Green com Omar Torrijos, do Panamá, fizeram deles alvos políticos.

Quando artistas se aventuram na política, os riscos a sua reputação e integridade estão sempre presentes. Mas fora do mundo livre, onde a crítica do poder é, na melhor hipótese, difícil, e na pior, praticamente impossível, figuras criativas como Ai e seus colegas são amiúde as únicas com coragem para dizer a verdade contra as mentiras dos tiranos. Já precisamos do samizdat (cópia e distribuição clandestina de literatura proibida) para divulgar a verdade sobre as perversidades na União Soviética. Hoje, o governo da China se tornou a maior ameaça mundial à liberdade de expressão, e por isso precisamos de Ai Weiwei, Liao Yiwu e Liu Xiaobo. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

SALMAN RUSHDIE, AUTOR DE LUKA AND THE FIRE OF LIFE (RANDOM HOUSE), É PRESIDENTE DO PEN WORLD VOICES FESTIVAL OF INTERNATIONAL LITERATURE

Fonte: ESTADÃO