“Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá, as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá”, assim começa um dos poemas mais conhecidos da literatura brasileira, a Canção do Exílio. Seu autor, Gonçalves Dias, foi um dos mais influentes poetas do romantismo brasileiro embora tenha atuado também como advogado, jornalista, etnógrafo e teatrólogo. Natural da cidade de Caxias, no Maranhão, a obra de Gonçalves Dias foi muito influenciada por um grande sentimento de patriotismo, não por acaso ele é descrito por José de Alencar como “o poeta nacional por excelência”. Pois será que Gonçalves teve a premonição da diversidade de aves, incluindo possíveis novas espécies, que o seu Maranhão possuía?
Escrita em julho de 1843, em Portugal, país onde Gonçalves Dias se graduou em direito e morou por cerca de sete anos, a Canção do Exílio carrega um interessante e sutil paradoxo. Embora tenha eternizado ainda na primeira metade do século XIX a exuberante fauna e flora brasileira em versos, o leste do Maranhão, região da terra natal de seu autor, permanece ainda hoje como um dos locais com a biodiversidade menos conhecida do país.
Há cerca de um ano, no entanto, essa situação começou a mudar graças a dois observadores de aves maranhenses: Firmino Freitas Filho, advogado e procurador-geral do município, e Thiago Xavier, estudante. Incentivados pela descoberta do site Wikiaves, os dois amigos começaram a fotografar as aves de Caxias e a disponibilizar as fotos na internet. Desde então, revelou-se que na terra de Gonçalves Dias cantam muitas outras espécies além do sabiá, incluindo uma possível nova espécie, desconhecida da ciência.
O Wikiaves é um site colaborativo de livre acesso no qual observadores de aves e ornitólogos podem postar fotos e sons (vocalizações) de aves brasileiras. O site já conta com cerca de 11.500 usuários cadastrados, um acervo superior a meio milhão de fotos e 33.500 gravações. Essa “enciclopédia on-line” das aves brasileiras tornou-se um dos sites sobre aves mais visitados em todo o mundo e um dos principais impulsionadores da atividade de observação e fotografia de aves na natureza, que está virando uma mania nacional.
No início de 2010, Firmino e Thiago começaram a postar no Wikiaves fotos das aves de Caxias, a maior parte delas clicadas em um sítio de propriedade do procurador. Em maio de 2011, os até então pouco experientes observadores de aves deixaram a comunidade ornitológica brasileira em polvorosa ao compartilharem no Wikiaves fotos de uma das mais enigmáticas aves brasileiras, o jacu-estalo (Neomorphus geoffroy).
As fotos do jacu-estalo e das outras quase 300 espécies já registradas por Thiago e Firmino em Caxias, incluindo outras raridades como o pica-pau-do-parnaíba (Celeus obrieni), já seriam o suficiente para colocar Caxias no mapa da ornitologia e do turismo de observação de aves no Brasil. No entanto, a terra dos sabiás de Gonçalves Dias ainda guardava outra preciosidade ornitológica.
Em junho de 2012, acompanhados pelo estudante de biologia da Universidade Estadual do Ceará, Caio Brito, nós nos aventuramos em uma expedição cujo objetivo era visitar algumas das últimas áreas remanescentes de Mata Atlântica dos estados do Ceará e Piauí. Como estávamos perto da divisa com o Maranhão, decidimos esticar um pouco mais a viagem até Caxias na esperança de conseguirmos fotografar e gravar as vocalizações do jacu-estalo e do pica-pau-do-parnaíba.
O Grilinho de Caxias
“Em segundos, um diminuto e inquieto passarinho apareceu querendo descobrir quem tinha a ousadia de invadir seu território. Ele pousou na copa de uma árvore logo acima das cabeças do eufórico time ornitológico. “
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Após dois dias em Caxias guiados por Thiago e Firmino, avistamos as duas aves que queríamos, além de diversas outras espécies interessantíssimas, como o chupa-dente-de-capuz (Conopophaga roberti), papa-taoca (Pyriglena leuconota) e o campainha-azul (Porphyrospiza caerulescens). Estávamos empolgados com os resultados desta visita de última hora. Entretanto, uma pequenina e importante surpresa ainda nos aguardava.
Era o final da segunda e última tarde de exploração em Caxias, faltava pouco para escurecer, quando, de repente, um canto trinado vindo das copas chamou nossa atenção. Embora remetesse mais a um grilo do que a uma ave, a vocalização lembrava bastante a voz de populações de uma espécie de pássaro típica da Mata Atlântica, o miudinho (Myiornis auricularis), cujo nome popular é bastante apropriado em se tratando de uma das menores espécies de aves brasileiras.
No entanto, a população mais próxima do miudinho estava na Mata Atlântica pernambucana a cerca de 1.000 km dali, completamente isolada das matas de Caxias pela secura da Caatinga e do Cerrado.
Cientes da importância potencial do achado, ligamos os gravadores e apontamos os microfones para as copas. A vocalização gravada foi então reproduzida com caixinhas de som portáteis com o objetivo de atrair a ave e trazê-la mais próxima a nós, uma técnica conhecida entre os ornitólogos como “playback”. Em segundos, um diminuto e inquieto passarinho apareceu querendo descobrir quem tinha a ousadia de invadir seu território. Ele pousou na copa de uma árvore logo acima das cabeças do eufórico time ornitológico.
Era o momento dos binóculos e máquinas fotográficas entrarem em ação. Observações atentas e fotografias com lentes de longo alcance demonstraram imediatamente que embora outras características confirmassem a suspeita inicial de que o pássaro em questão era claramente aparentado ao miudinho, o ventre completamente branco e outras diferenças do padrão de cores eram bastante distintas da espécie da Mata Atlântica, que possui o ventre amarelo. Aliadas ao isolamento das populações encontradas em Caxias, essas diferenças nos levaram a concluir, ainda em campo, que, provavelmente, estávamos diante de uma nova espécie.
Estudos mais detalhados com o intuito de confirmar a autenticidade da descoberta já estão sendo conduzidos com o apoio do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo. Eles incluem comparações morfológicas e vocais mais aprofundadas, além de análises genéticas. Já está agendada uma expedição com maior duração para investigar melhor a avifauna da região leste do Maranhão. Seu principal objetivo é buscar populações de aves pouco conhecidas ou mesmo outras novidades.
Descobertas como essas demonstram o quão produtiva pode ser a aproximação entre a ciência e praticantes de atividades como a observação de aves, proporcionada pela criação do site Wikiaves. Essa união de forças impulsiona o esforço de desvendar a exuberante biodiversidade brasileira.
Como diria Gonçalves Dias, “nossos bosques tem mais vida”.
Ciro Albano é biólogo e trabalhou por anos em projetos de conservação de aves ameaçadas no Ceará. Hoje, atua como guia de observação e fotógrafo de aves, principalmente no Nordeste do Brasil. |
Luciano Lima começou a observar aves aos 13 anos e desde então os passarinhos jamais deixaram sua vida. Biólogo, dedica sua carreira à ornitologia. É mestrando da USP, onde seus estudos enfatizam as aves da Mata Atlântica. |