Segundo o arquiteto Fernando Betim, alguns edifícios ecológicos são projetados para se isolar da sociedade
 
POR GABRIEL LELLIS COM VINICIUS GALERA
Cada vez mais presente no dia a dia, o debate sobre sustentabilidade e preservação da natureza ganhou força nos últimos anos entre arquitetos e engenheiros. Nas grandes metrópoles, casas e prédios com tecnologia para consumir menos água e energia crescem em quantidade e apontam para uma tendência de busca por eficiência ecológica. Contudo, não faltam problemas e contestações sobre as construções sustentáveis. Nesta entrevista exclusiva para a Globo Rural, o arquiteto Fernando Betim, professor da PUC-RJ especialista sustentabilidade, debate as tendências futuras e problemas atuais do setor, e comenta as diferenças dos processos construtivos do campo e da cidade.
 
Globo Rural: Qual é a forma correta de definirmos o conceito de construção sustentável?
 
Fernando Betim: Antes de entendermos o significado de uma construção sustentável é preciso dominar o verdadeiro conceito de sustentabilidade, que está baseado em um tripé no qual os vértices são a tecnologia, o ambiental e as questões sociais. Quando tratamos hoje de sustentabilidade o primeiro elemento a ser lembrado é o tecnológico, englobando o processo construtivo, os materiais e seus sistemas de produção. Sustentabilidade não refere-se apenas à produção industrial. Não se trata de algo indiferente a outras características da dinâmica humana muitas vezes ligadas à cultura de um povo.
 
Tudo o que produzimos, tecnologicamente falando, necessita do envolvimento de quem ali habita ou convive. Podemos, por exemplo, ter cidades construídas com edificações compostas de elementos sustentáveis, como é o caso de algumas habitações populares, por exemplo. Também é possível apresentar projetos extremamente eficientes energeticamente e que atuam consideravelmente bem sob os aspectos de apropriação das oportunidades climáticas, como a chuva ou o vento. Contudo, somente a parte técnica não as garante como sustentáveis se não forem aceitáveis e funcionais de acordo com  os costumes e linguagens dos habitantes. Há casos históricos de conjuntos habitacionais totalmente sustentáveis na questão ecológica, mas que foram abandonados por não condizerem com as formas de convívio das pessoas.
 
Portanto, uma construção sustentável não existe sem cuidar de uma apropriação social. Um prédio ocioso, como o exemplo citado, causa um impacto grande nas cidades por gerarem problemas de conservação e habitação. As verdadeiras construções sustentáveis se mantém ativas, funcionais e econômicas. E para serem justamente econômicas precisam estar diretamente integradas com o conjunto urbano em que está inserida.
 
Globo Rural: Que barreiras existem para termos construções 100% sustentáveis?
 
Fernando Betim: Nunca conseguiremos encontrar uma proposta construtiva que garanta total sustentabilidade. A cada dia estamos incorporando novidades tecnológicas, tanto na engenharia quanto na arquitetura, bem como avançam as transformações das dinâmicas da sociedade, alterando suas necessidades e desejos. Quando a sociedade muda, mudam também suas maneiras de ocupar o espaço.
 
“Uma construção sustentável não existe sem cuidar de uma apropriação social”
Neste sentido de mudança é fundamental o aspecto de que as pessoas assumam novas ideias e comportamentos — algo claramente identificado na velocidade de mudança das novas gerações e seu olhar de recomposição das maneiras de habitar as cidades. Hoje, quase todos assumiram a percepção de que o ser humano fez muita bobagem ao longo da sua História, sem se preocupar com os limites do planeta ou os impactos ambientas causados por um processo produtivo desgovernado. Isso, obviamente, trouxe uma exigência por mudanças que abraçaram as questões sustentáveis.
 
Globo Rural: O avanço na quantidade de construções sustentáveis depende somente da diminuição nos custos exigidos pelas obras?
 
Fernando Betim: Toda tecnologia, no início do seu processo de implementação, exige recursos maiores. Sua posterior popularização, no entanto, a transforma em um processo natural mais barato. Podemos citar o caso da energia eólica, hoje algo bem mais popular do que há anos atrás.
 
Falando especificamente de construções, existem sim barreiras econômicas que elevam os custos. Hoje, o alto preço pago é reflexo do custeio necessário do processo de pesquisa e desenvolvimento.
 
Ao mesmo tempo, não podemos descartar nesta conta a dinâmica humana das áreas urbanas. Até cinquenta anos atrás a maior parte da população habitava áreas rurais, onde o problema da moradia não existe porque as pessoas nascem conhecendo os processos construtivos, e aprendem a lidar com as condições locais e materiais disponíveis no local. Com os recursos da natureza pode-se facilmente fazer uma cerca ou um curral, por exemplo. E este é um conhecimento comum a maior parte das pessoas do campo.
 
“A favela hoje é uma solução imediata, de urgência e emergência. Tal como se dá na dinâmica rural”
Nas cidades, a concentração humana é de tal forma que exige um esforço coletivo maior para sanar as necessidade de moradia. O tempo gasto pelos cidadãos na dinâmica urbana é diferente do observado nos habitantes de áreas rurais. As cidades, as pessoas estão muito envolvidas com seus trabalhos, muitas vezes pela necessidade dos salários para a sobrevivência. As famílias dependem da participação de outros atores locais para sanar seus problemas com habitação. Por isso contratam-se empreiteiras para realizar a construção, ou espera-se a intervenção estatal, aumentando o impacto econômico com materiais e mão de obra.
 
As comunidades periféricas são um reflexo desses problemas causados pela vida urbana. Não à toa as construções acontecem com a participação coletiva. Os mutirões em busca de materiais servem de enfrentamento às barreiras econômicas. E as respostas da população à desigualdade podem ser muito interessantes do ponto de integração social, ainda que não sejam tão agradáveis à nossa atual educação estética. A favela hoje é uma solução imediata, de urgência e emergência. Tal como se dá na dinâmica rural.
 
Globo Rural: Pensando nas grandes metrópoles, os edifícios classificados como sustentáveis estão restritos a áreas de alto padrão, com aluguéis até 20% mais caro. O avanço da construção sustentável está aumentando o abismo da desigualdade social?
 
Fernando Betim: As edificações não devem ser concebidas como algo isolado da sociedades, mas sim pensadas dentro de uma rede de ações e relações com seu entorno capazes de conversar com a cidade, bairro e entorno. Quando um edifício é pensado de forma a ficar isolado ele causa um problema mais predominantemente social do que ambiental, embora os problemas sociais também sejam da ordem ambiental.
Hoje podemos notar um tendência na América Latina de construção de edifícios autossuficientes. Devemos entendê-los como algo sustentável do lado meramente eficiente material e tecnológico. É ingênuo achar que construções desse tipo acabam com todos os problemas humanos, pois o ambiental pode até estar resolvido, mas as lacunas sociais continuam abertas.
 
A forma como as cidades têm crescido, com a ocupação desenfreada de todas as áreas florestadas ou ociosas, apenas catalisa esse tipo avanço imobiliário negativo e sua consequente especulação imobiliária em detrimento do bem-estar humano. Enquanto houver desequilíbrios como este não haverá cidades sustentáveis. Teremos unicamente a tecnologia no lugar de uma sociedade pacífica, tranquila e feliz. Falta uma compreensão de conceitos fora da ordem matemática. A vivência humana precisa ser levada em conta.
 
Globo Rural: O senhor pode dar mais exemplos? Por que esses edifícios autossuficientes não são sustentáveis, apesar de cumprirem requisitos ecológicos?
 
Fernando Betim: Vamos pensar em um dos populares edifícios de vidro do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Eles resolvem, na sua independência construtiva, um problema de eficiência luminosa. Sabemos que climas tropicais e temperados exigem da arquitetura espaços promotores muito mais de sombreamento do que de incorporação de áreas luminosas. Estes espigões, erguidos aos moldes dos países frios europeus, são construídos com tecnologia capaz de minimizar a entrada do calor em seus ambientes externos, diminuindo seus gastos com ar condicionado. Por outro lado, todo o calor é refletido para a área externa ao edifício, diminuindo o conforto da população no entorno, que acaba sendo obrigada a gastar energia com ar condicionado para combater o calor.
 
Veja neste caso que não houve uma real solução do problema de eficiência energética se pensarmos em termos de sociedade como um todo. Parte desse problema vêm do fato de termos importado uma estética construtiva de países com realidades sociais e climáticas muito diferentes das do Brasil.
Globo Rural: E por que adotamos padrões estrangeiros ao invés de criar uma arquitetura própria?
 
Fernando Betim: Há pouco tempo atrás até havia mais edifícios avarandados e áreas sombreadas, mas a especulação imobiliária cresceu rápido demais, e aumentou o valor de espaços fechados, como os espigões de vidro sustentáveis de forma egocêntrica.
 
Não podemos ser inocentes de achar que os interesses econômicos não influenciam a forma como a cidade cresce. Existem muitas indústrias interessadas em valorizar sua produção e dar vazão aos seus produtos. Naturalmente que, para legitimar tais necessidades elas vão investir em um discurso de marketing sobre sustentabilidade, independente se seus produtos são adaptados às realidades locais.
 
Ainda falta na sociedade contemporânea um pensamento mais aprofundado sobre o ciclo e a dinâmica da vida. Há um afogamento na urgência de se fazer negócios. Culturalmente estamos muito atrelados a essa urgência na comercialização do que se produz, com o bem estar em segundo plano. Resumindo, o “bom negócio” tem comandado as propostas arquitetônicas.
 
Globo Rural: No ano passado o Brasil ficou em terceiro lugar no ranking Leadership in Energy and Environmental Design (LEED) na categoria de país com maior quantidade de empreendimentos certificados pelo selo sustentável. Apesar dos problemas, o ranking indica de alguma forma que estamos no caminho certo ou apenas mascara os erros?
 
Fernando Betim: O LEED faz parte de uma série de certificações que estão sendo criadas como reflexo do aumento da preocupação com os aspectos sustentáveis. E estas são medidas positivas, por influenciam um processo de aprimoramento constante.
 
“Não podemos ser inocentes de achar que os interesses econômicos não influenciam a forma como a cidade cresce”
Em relação ao LEED, ele tem como foco principal as questões tecnológicas. Entretanto, não consegue mensurar os aspectos sociais pelo fato de esta ser uma área com complexidades que a matemática é incapaz analisar com exatidão.
 
Não devemos tomar nenhum ranking como resposta definitiva, mas também não devemos descartá-los totalmente, afinal, são necessários por apontarem nuances incompreensíveis sem uma análise estatística profunda.
 
Globo Rural: E qual país podemos apontar hoje como exemplo a ser seguido em termos de construções sustentáveis?
 
Fernando Betim: A Alemanha hoje se destaca sob o aspecto tecnológico, e também caminha a passos largos na sustentabilidade social. Claro que não podemos nos esquecer do retrocesso recente do fechamento das fronteiras para os refugiados. Um continente inteiro fechando fronteiras é uma metáfora em macroescala dos edifícios isolados que citamos. Mas eles certamente ainda estão no caminho certo.
 
Contudo, sempre olhamos para as potências em busca de referência e acabamos nos esquecendo de países menores com formatos de vida exemplares. O Butão, por exemplo, tem uma linda resposta social ao praticamente minimizar as questões tecnológicas de uma edificação por meio da felicidade (o país é conhecido por ter instituto um ranking interno para medir a felicidade de seus habitantes). Os butaneses são felizes com suas convivências coletivas e moradias, ainda que sejam simples para nossos padrões ocidentais. E uma sociedade feliz sabre equilibrar melhor os seus recursos naturais. Não é a arquitetura o ponto mais importante para um povo, mas sim como ele vive. A vida determina a boa arquitetura, e não a arquitetura determina uma boa vida.