Uma lei que acaba de ser aprovada pela assembleia da Dakota do Sul (Meio-Oeste dos EUA) faz recomendações para o ensino de ciências nas escolas públicas estaduais, advertindo “isso é uma teoria, não um fato científico comprovado” e pedindo a apresentação “equilibrada e objetiva” dos dados.

Errou quem está achando que a lei versa sobre a teoria da evolução. O tema dela é o ensino do aquecimento global.

A semelhança de palavras-chave está longe de ser mera coincidência. A lei da Dakota do Sul parece apenas tomar de empréstimo a retórica dos criacionistas americanos e aplicá-la a mais uma questão polêmica, mas outros Estados americanos, como Texas, Louisiana, Oklahoma e Kentucky, também aprovaram ou discutiram legislação que cita, lado a lado, a teoria da evolução e as mudanças climáticas como assuntos que os professores deveriam explorar como controversos ou em aberto.

Há uma convergência ao menos parcial de interesses entre criacionistas e céticos do clima (como são chamados os que negam o aquecimento global ou, ao menos, a contribuição majoritária do homem para o fenômeno).

Esse é o perfil, por exemplo, do senador James Inhofe (Partido Republicano de Oklahoma), ou dos membros do Discovery Institute, a organização americana que é a principal proponente do chamado design inteligente, versão repaginada do criacionismo.

Mas não se trata de um fenômeno restrito aos EUA. O representante do design inteligente no Brasil, Enézio de Almeida Filho, já se declarou com frequência um cético da mudança climática causada pelo homem em seu blog, “Desafiando a Nomenklatura Científica”.

Cristãos criacionistas brasileiros, como o adventista Michelson Borges, editor da Casa Publicadora Brasileira e mantenedor do blog Criacionismo.com.br, reconhecem a aproximação entre os dois campos. “A convergência se dá simplesmente pelo fato de que os criacionistas, no esforço por se pautarem por pesquisas fidedignas e dados concretos, deram-se conta, já há algum tempo, de que estava havendo certo exagero na questão do aquecimento antropogenicamente causado”, afirma ele.

Joshua Rosenau, do Centro Nacional para Educação Científica dos EUA, lembra que os dados mais recentes sobre as atitudes da população americana em relação à ciência indicam uma proximidade estatística entre criacionistas e céticos da mudança climática.

“A correlação não é imensa, mas também não é trivial”, contou ele à Folha. “A aceitação do aquecimento global [causado pelo homem] é de duas a três vezes mais comum entre as pessoas que também aceitam a evolução. Por outro lado, entre os criacionistas, o número de pessoas que aceita o aquecimento é mais ou menos igual ao das que o negam”, diz Rosenau, citando levantamento feita no ano passado pelo Centro de Pesquisas Pew com cerca de 2.000 americanos.

Astros e chifres

A linguagem do projeto de lei original da Dakota do Sul (o qual, a rigor, não estabelece sanções, mas apenas faz recomendações aos professores) leva qualquer um a se sentir tentado a atribuir a aliança entre céticos do clima e criacionistas à ignorância compartilhada.

O texto falava da “variedade de dinâmicas climatológicas, meteorológicas, astrológicas, termológicas e ecológicas que podem efetuar [sic] os fenômenos mundiais do clima” e usava a criação de vacas leiteiras na Groenlândia medieval como exemplo dos benefícios de um planeta mais quente. Tanto a astrologia quanto os bovinos sumiram do texto final.

A parceria entre criacionistas e céticos do clima se fortalece num momento político complicado para a ciência climática. Uma série de deslizes na maneira como foi produzido o último relatório do IPCC, o painel do clima da ONU, foram usados para turbinar o descrédito contra as conclusões dos pesquisadores no começo deste ano.

Também não ajudou o vazamento de uma série de e-mails trocados entre climatologistas, roubados dos servidores da Universidade de East Anglia, que os céticos do clima interpretaram como indícios de maquiagem dos dados sobre o aquecimento global.

As acusações foram rebatidas, em grande medida, mas sua divulgação tem ajudado a direita americana a encurralar o governo Obama em suas tentativas de aprovar leis capazes de limitar a emissão de gases do efeito estufa nos EUA.

Afinidades eletivas

As afinidades entre criacionistas e negacionistas do clima são complexas. Em parte, há a coincidência ideológica e social, já que ambos os grupos estão associados à direita de inspiração religiosa.

Alguns criacionistas, como Borges, têm reservas teológicas em relação ao movimento ambientalista associado ao combate à mudança climática global (leia entrevista à direita). E há, claro, o casamento de interesses econômicos.

“Dos negacionistas do aquecimento global, a maioria é motivada principalmente pelos negócios e pela política. Um número chocante de pessoas parece se opor à ideia porque não gostam de Al Gore. Muitos trabalham em empresas petrolíferas ou pertencem a indústrias que teriam de pagar pela mitigação do aquecimento”, diz Rosenau. “Então, creio que é uma aliança entre conservadores religiosos e conservadores econômicos. Descobriram táticas que funcionam e compartilham-nas livremente.”

Para Sandro de Souza, biólogo do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer que abordou o movimento criacionista em seu livro “A Goleada de Darwin” (Editora Record), é mais fácil imaginar qual é o interesse político de criacionistas em apoiar o negacionismo climático. “É uma maneira de colocar as coisas no mesmo saco. Os criacionistas diriam: “Vocês viram como eles [os climatologistas] colocaram a ideologia na frente da ciência”.

“Ora, assim como a ideologia contaminou o clima, também poderia contaminar a teoria da evolução. Seria uma espécie de prova de princípio para eles”, exemplifica o biólogo brasileiro.

“Os criacionistas apoiam qualquer crítica do status quo científico porque acreditam que isso favorece seu argumento central: não aceitar as conclusões dos cientistas. Sobreposições culturais e sociais entre criacionistas e negacionistas existem, mas estão longe de serem precisas. Muitos negacionistas não apoiam o criacionismo”, adverte Francisco Ayala, ex-frade dominicano e biólogo da Universidade da Califórnia em Irvine que acompanha de perto os debates sobre a teoria da evolução nos EUA.

Exemplo disso é Richard Lindzen, do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), o qual, em suas apresentações, ironizou os próprios climatologistas que defendem o aquecimento global causado pelo homem comparando-os aos defensores do design inteligente.

Rosenau também lembra que nem todos os criacionistas aderiram ao campo negacionista. “Cristãos teologicamente mais liberais, que podem acreditar na criação divina mas não desejam que ela seja ensinada nas escolas, tendem a simpatizar com o movimento do Cuidado com a Criação [movimento ambientalista evangélico], e a aceitar o fato do aquecimento global justamente porque acreditam que Deus lhes deu o domínio sobre a Terra”, afirma.

Folha de São Paulo