Livro sobre o poeta português traz esforço notável de pesquisa, mas troca literatura por “verdade” biográfica
O OBJETIVO NÃO É INTERPRETAR, MAS BUSCAR RELAÇÕES ENTRE VIDA E OBRA, PARA QUE O INICIANTE NÃO SE ILUDA |
CARLOS FELIPE MOISÉS
ESPECIAL PARA A FOLHA
O esforço é notável: milhares de documentos compulsados, dezenas de pessoas entrevistadas, em três continentes, e toda a vasta obra de Fernando Pessoa percorrida palmo a palmo.
Resultado: 700 e tantas páginas de comovida homenagem ao poeta, famoso pelos heterônimos. Trata-se de um relato biográfico em que o fio narrativo, abrindo mão de foco ou finalidade, constantemente envereda por atalhos e digressões. Podem levar das alfaiatarias, barbearias e cafés frequentados pelo poeta, às casas onde morou e aos escritórios onde trabalhou. De uma antologia não comentada de partes da obra às hipóteses relativas ao namoro com Ophelia e à sexualidade em geral, e muita coisa mais.
“Não é um livro para especialistas”, afiança o autor, já que não lida com literatura, mas tem o mérito de reunir no mesmo lugar uma enorme quantidade de informações (fantasias à parte) até então dispersas. E isso pode ser útil a… especialistas.
SEM INTERPRETAÇÃO
Modestamente, porém, o autor considera a biografia um “simples guia para não iniciados”. Por isso, Cavalcanti não arrisca nenhuma “nova interpretação”.
Seu objetivo, com efeito, não fazer interpretações, mas buscar relações entre vida e obra, a fim de que o iniciante não se iluda julgando que vai lidar com poesia ou literatura: é tudo, só, uma questão de “verdade” biográfica.
Assim, ficamos sabendo (um exemplo, entre muitos) que, no poema “Tabacaria”, a pequena dos chocolates “é sua sobrinha Manuela Nogueira” -“como ela própria me confessou”, acrescenta o autor. O especialista, se quiser, que continue a buscar suas interpretações.
MÁSCARAS
O subtítulo diz: “Uma (Quase) Autobiografia”. É que o escritor ilustra o seu próprio texto (sem aspas) com abundantes frases soltas (já agora entre aspas), livremente extraídas da obra pessoana.
Cleonice Berardinelli, na apresentação do livro, vai direto ao ponto: “Essas aspas funcionam como uma espécie de nova máscara, desta vez aplicada à face do autor deste novo livro”.
O que temos, então, nem “auto” nem “quase auto”.
Trata-se apenas de uma biografia, gênero híbrido em que a têmpera do biógrafo às vezes rivaliza com a do biografado, quem sabe para reforçar a homenagem.
CARLOS FELIPE MOISÉS é professor de literatura da USP e autor de “O Poema e as Máscaras” (1981), “Fernando Pessoa: Almoxarifado de Mitos” (2005) e “Conversa com Fernando Pessoa” (2008), entre outros livros
FERNANDO PESSOA: UMA QUASE AUTOBIOGRAFIA
AUTOR José Paulo Cavalcanti Filho
EDITORA Record
QUANTO R$ 79,90 (736 págs.)
AVALIAÇÃO regular
Fonte: Folha de São Paulo