Uma voz otimista sobre o futuro do mundo pós-internet, o filósofo francês Pierre Lévy enxerga um sem-número de possibilidades no mundo digital (que chama de ciberespaço). Durante sua visita a cidade de Santos, para o evento Cibercultura 10 + 10, da CPFL Cultura, ele discutiu esse futuro com o músico e ex-ministro da Cultura Gilberto Gil e deu a entrevista que se segue.

“O mundo precisa da rapidez doTwitter e da solidez das informações contidas em A República, de Platão”

Que espécie de construção de conhecimento o senhor enxerga em ferramentas como o Twitter e em redes sociais como o Facebook e o Orkut? No dia a dia esses instrumentos não acabam se tornando reflexos de um processo de mediocrização do mundo?

Não vejo dessa forma. Especialmente no Twitter, cujo conteúdo que você enxerga depende exclusivamente de um processo seletivo seu. Eu tenho uma conta no Twitter e sigo menos de 200 pessoas. E se eu vejo que a pessoa está usando o espaço para falar amenidades, contar o que está vestindo, eu simplesmente deixo de seguir a pessoa. Mas se vejo um tweet com uma chamada do tipo `Olha só esse texto sobre a crise da mídia impressa’ e um link ao lado, eu clico no link, leio o texto e estou feliz.

É isso que torna a proposta do Twitter tão interessante?

É isso. Você gerencia as informações. É você o responsável por escolher quem segue e o que chega de informação útil, não é preciso esperar que um site decida o que é ou não importante. Ou uma tevê, um rádio, uma revista, um jornal. É conhecimento construído de forma coletiva, sim. E horizontal, o que é mais importante. O que é preciso entender é que a ferramenta em si não é nem boa nem ruim. Ou so que se faz dela é que varia.

Esse uso depende do conteúdo pessoal. Quem não tem o que dizer não tem o que colocar no Twitter, como então estimular a vida inteligente no ciberespaço mesmo entre quem não está disposto a discussões acadêmicas?

Isso é muito claro e, ao mesmo tempo, um desafio tremendo. As pessoas precisam aprender a fazer as coisas do jeito certo. É simples assim. É educação.

O senhor tem o mesmo olhar para as redes sociais como o Facebook e o Orkut?

Eu estou no Facebook. Entro em boa parte dessas novidades de internet para sentir como funcionam, quais são os recursos. Mas o Facebooktem um caráter mais de diversão, de lazer, que também é importante. É para compartilhar fotos, trocar links engraçados. Outro serviço que acho interessante é o Delicious (www.delicious.com), que também é uma rede social, se for utilizado da forma correta. E estou no Twine (www.twine.com), também. Mas a ferramenta mais interessante da internet é oTwitter, se usado do jeito certo.

É um tipo de comunicação que irá substituir, em algum ponto da história, a tradicional?

Não creio. Confio mais em uma complementaridade. O Twitter não pode existir sem que existam websites e blogs, que são as fontes de conteúdo. É mais um modo de se colocar em contato com pessoas e ideias interessantes. Há várias camadas. Temos o Twitter no topo da pirâmide. Em seguida temos os blogs. Depois, os websites sérios. E talvez, em seguida, os livros. É preciso complementar sem substituir. É tão importante a rapidez e a concisão do Twitter quanto a solidez da informação que encontramos em A República de Platão.

O seu conceito de inteligência coletiva mudou muito do período em que o senhor começou a estudá-lo até hoje?

Inteligência coletiva é inerente a qualquer animal social. Incluindo o ser humano. Mas o homem tem algo que outros não têm: a linguagem. E, graças a ela, essa inteligência coletiva é muito mais forte. Mas eu não acho que o ciberspaço seja necessário para que essa inteligência coletiva exista. Ele é apenas um multiplicador mais poderoso do que a mídia tradicional. Mas eu enxergo agora que a principal diferença é a possibilidade de uma inteligência coletiva reflexiva, que vem da nossa capacidade de observar o próprio processo cognitivo.

Um cidadão médio sabe no máximo sua língua-mãe e uma outra. Essa barreira da linguagem atrapalha o crescimento de uma verdadeira inteligência coletiva mundial?

A principal barreira é o idioma. E também o fato de as línguas naturais não terem evoluído para atender às demandas dessa nova realidade. Então, se houvesse um código universal, solucionaria uma série de problemas de comunicação.

Estaria o inglês se tornando esse idioma universal?

Eu sei que há muita gente que pensa assim. Mas, para começar, mesmo que seja muito praticado, não é um idioma que todos no mundo falam. Isso é uma grande questão, pois como qualquer língua natural, é cheia de irregularidades,de ambiguidades. E também não é adequada para este fim. Temos que pensar em algo novo, diferente das línguas naturais em geral. Por outro lado, ao escolher o inglês vem à tona toda a questão da dominação cultural. Que, como toda dominação, é bastante temporária. Talvez em um século seja o chinês, ninguém sabe. É preciso que seja algo diferente do que já existe.

Algo como o latim, que não era a língua-mãe de nenhum povo mas influenciou quase todos os idiomas…

O caminho pode ser esse. É possível pensar no que o latim representou na Europa medieval. Não era a língua-mãe de ninguém. Era uma língua especial para a ciência, a religião e para as coisas sagradas. E havia as línguas profanas, ao mesmo tempo. Inglês é uma língua profana.

Em que nível o sr. acha que a evolução do ciberespaço irá afetar os conceitos de política e democracia? Existiria no mundo real do futuro e como visto em livros de ficção científica, uma e-democracia, com consultas populares on-line?

A noção de votação on-line é a faceta menos interessante da ciberdemocracia. Há três avenidas principais, nesse quesito. A primeira é a chance de um número maior de pessoas participar, dar opiniões em questões públicas. A segunda pode ser chamada de e-governo, governo aberto, governo 2.0… Independentemente do nome que se dá, isso significa, na prática, maior transparência por parte do governo. O terceiro ponto é o advento de uma opinião pública global.

Mas o ciberespaço alcançará a totalidade da humanidade ou corremos o risco de viver uma realidade digna de Admirável Mundo Novo?

Há 20 anos ­ e isso é menos do que uma geração ­ havia menos de uma pessoa por país conectada. Hoje estamos chegando próximos da metade da população global. Chegaremos, lentamente, a 85%, 90%. E aqui, novamente, o problema não será o acesso, tecnicamente falando, mas a capacidade das pessoas de interagirem com esse mundo de forma responsável. E, de novo, caímos na questão da educação, que não é um problema a mais, mas a fonte de todos os outros.

Vivemos o ano da França no Brasil. Que semelhanças o senhor, de origem francesa, vê entre os dois países?

A França viveu períodos de produçãointelectual importante. Mas acho que os europeus em geral, apesar da fachada de progressismo, são extremamente conservadores. Prefiro esse desejo de novidades constante que vivem os brasileiros.

A Tribuna