Esquecer sempre foi fácil: costumava ser o comportamento padrão diante das tantas vidas que precisam caber em uma só. Lembrar de cada aniversário, início de namoro -e seus consequentes corações partidos-, promoção de emprego, tudo bem. Mas armazenar na memória todos os detalhes dos anos que se passam não era possível nem para aqueles humanos considerados mais evoluídos. Até o momento em que a internet transformou essa utopia em realidade.

Com custos de armazenamento de dados cada vez mais baixos, a era digital modificou completamente a relação do homem com a memória. É tão barato guardar gigabytes de fotos, textos e vídeos que são poucas as pessoas que escolhem o que realmente querem ter para sempre. Elas esquecem, no entanto, que as informações colocadas na rede são difíceis de deletar -sites como o Wayback Machine são capazes de encontrar, em segundos, aquilo que você achava que tinha apagado.

Em consequência, os erros do passado não ficam mais restritos àquele tempo e podem voltar a nos assombrar a qualquer momento.

Precisamos mesmo disso? O pesquisador Viktor Mayer-Schöenberger acredita que não.

Autor do livro “Delete -The Virtue of Forgetting in the Digital Age” (delete, a virtude de esquecer na era digital; Princeton University Press, US$ 24,95), ele afirma que a “limpeza” que o cérebro faz constantemente é uma virtude, e não uma limitação. É o que nos permite uma atitude tão simples quanto essencial: a de seguir em frente.

A seguir, leia a entrevista que Viktor Mayer-Schöenberger concedeu à Folha por e-mail.

FOLHA – A internet está tornando difícil o ato de esquecer informações?
VIKTOR MAYER-SCHÖENBERGER – Não é só a internet, mas a combinação com a digitalização, que nos permite usar as mesmas ferramentas tecnológicas para processar, armazenar e disseminar diferentes fluxos de informação, incluindo imagens, áudio e vídeo. Isso cria fortes economias de escala, o que tem facilitado uma queda dos custos de armazenagem. Hoje é mais barato armazenar todas as imagens digitais em um disco rígido, em vez de gastar alguns segundos para decidir se quer manter uma foto digital ou excluí-la. Adicione a isso grandes avanços na recuperação da informação, bem como uma rede digital global, a internet, para acesso ao armazenamento digital, e você tem uma situação em que a lembrança é o padrão, e esquecer, a exceção.

FOLHA – No seu livro, você fala sobre o papel de lembrar e a importância de esquecer. Pode explicar isso?
MAYER-SCHÖENBERGER – Durante toda a história da humanidade, o esquecimento tem sido fácil para nós. Ele é construído em nosso cérebro: a maior parte do que nós experimentamos, pensamos e sentimos é esquecida rapidamente. E (principalmente) com uma boa razão: essas coisas não são mais relevantes para nós, e esquecer limpa a mente. Esquecer nos ajuda a abstrair e a generalizar, a ver a floresta em vez das árvores, e a viver e agir no presente, em vez de ficar amarrado a um passado cada vez mais detalhado. Esquecer nos ajuda a evoluir, a crescer, a seguir em frente -para aprender novas coisas.
Pelo esquecimento, a nossa mente se alinha com o nosso passado, com nossas preferências do presente, tornando mais fácil a sobrevivência e a vida suportável.
Pelo esquecimento, também facilitamos a nossa capacidade de perdoar os outros por seus comportamentos.
O que é verdadeiro para indivíduos também é verdadeiro para a sociedade em um aspecto mais amplo. As sociedades devem ter a capacidade de perdoar indivíduos esquecendo o que eles fizeram, reconhecendo, deste modo, que os seres humanos têm a capacidade de mudar e de crescer.

FOLHA – Em seu livro, você diz que a memória perfeita altera nosso comportamento. Como isso acontece?
MAYER-SCHÖENBERGER – A memória perfeita tem dois potenciais efeitos de congelamento. O primeiro é em relação à sociedade. Se tudo o que dizemos e fazemos hoje puder ser usado contra nós em um futuro distante, acabando com a possibilidade de conseguirmos um emprego melhor ou um relacionamento melhor, muitos de nós vamos começar a nos censurar sobre o que fazemos e dizemos on-line hoje. A memória perfeita criará um pan-óptico temporário -o oposto exato do que precisamos em uma sociedade democrática baseada em robustos debates cívicos.
Minha segunda preocupação recai sobre a nossa capacidade de decidir e agir no presente.
Pessoas com memória perfeita reclamam que sua tomada de decisão é dificultada por sua incapacidade de verter o passado -recordar todo o nosso passado empurra-nos para que nos tornemos indecisos.
Nós devemos saber em que medida a memória perfeita usurpa nossas vidas. Algumas vezes, a memória pode ser útil, mas será eu realmente preciso buscar no Google o nome de todo mundo antes de encontrar essas pessoas?

FOLHA – A memória é construída tanto pelo que aconteceu quanto pelo que não aconteceu. É parte da evolução humana criar histórias, misturá-las, mentir até. A total capacidade de armazenar informação pode afetar os afetos?
MAYER-SCHÖENBERGER – Sim, certamente. Nossa memória humana não é fixa. Ela é constantemente reconstruída com base em nossas preferências e valores presentes. Isso reduz a dissonância cognitiva e nos permite viver profundamente enraizados no presente. Se percebemos que a nossa memória humana não é perfeita e começamos a confiar em memórias digitais mais do que na nossa, três terríveis consequências podem seguir: (a) podemos acreditar que o que é capturado digitalmente e lembrado é o registro completo, embora não seja (muito pode não ter sido capturado digitalmente); (b) nós podemos nos tornar dependentes da memória digital e quem quer que seja que controla essa memória digital poderá ter o poder de reescrever a história; (c) se percebermos que a memória digital também pode não ser confiável, podemos desistir da história e da memória completamente -uma espécie arrancada sem passado.

FOLHA – Quais são os riscos de termos todas as informações disponíveis na nuvem computacional?
MAYER-SCHÖENBERGER – Se a privacidade dos indivíduos na rede falhasse em massa, todo mundo seria exposto, e a privacidade desapareceria. O sociólogo Goffman tem uma fala famosa sobre a necessidade de os seres humanos terem mais de uma fase em suas vidas. Por exemplo: uma fase para frente e uma fase para trás. Se todos os dados podem ser vistos por todos, a diferenciação desses estágios entraria em colapso, com tensões inimagináveis.

FOLHA – Nós precisamos pensar antes de começar a espalhar tanta informação por aí?
MAYER-SCHÖENBERGER – Sim, nós precisamos pensar. Mas eu estou preocupado que, se pensarmos muito, vamos nos auto-censurar. Isso pode nos proteger individualmente, mas empobrece-nos como sociedade. Seria muito melhor se nós ainda pudéssemos compartilhar muita informação, mas ter um mecanismo para que essa informação fosse esquecida ao longo do tempo. É por isso que eu tenho defendido a reintrodução do esquecimento na era digital.

FOLHA – Como na vida, a internet precisa dar uma segunda chance às pessoas? Se não, a rede pode virar uma espécie de tribunal permanente?
MAYER-SCHÖENBERGER – Realmente. Temos que perdoar, esquecer. O Google não vai nos deixar fazer isso. Se nós procuramos o nome de alguém no Google e descobrimos uma citação de que ele estava dirigindo embriagado há dez anos, o quão relevante é isso para o presente dessa pessoa?

FOLHA – Você diria que a sociedade da era digital não concede perdão?
MAYER-SCHÖENBERGER – Eu acho que isso é bastante apropriado.

FOLHA – Você acha que falta uma regulação para a internet?
MAYER-SCHÖENBERGER – Eu não acho que exista um regulamento simples que possamos estabelecer para evitar os problemas da memória digital. Como eu detalho no meu livro, precisamos de uma combinação de uma série de medidas para enfrentar o desafio do fim do esquecimento na era digital.

FOLHA – Como podemos apagar nossas pegadas na internet?
MAYER-SCHÖENBERGER – Isso é muito difícil porque não temos controle total sobre as informações pessoais. Algumas empresas de internet oferecem (difíceis) formas de eliminar informações pessoais. Outras não. Um grupo no Google está trabalhando em ferramentas para extrair todas as informações pessoais do Google e, em seguida, excluí-las, mas esse serviço ainda está na sua infância. Há empresas comerciais que têm serviços para apagar as pegadas, mas são muito caros. Devemos ensinar os softwares a agirem de acordo com nossa mente. Tudo o que é arquivado deve sair do ar em algum momento. Devemos indicar a data de validade para as fotos que colocamos na rede, por exemplo. Quando chegar o momento, elas serão deletadas. Um exemplo é o site Drop.io.

FOLHA – Como você teve a ideia de escrever o livro?
MAYER-SCHÖENBERGER – Nos agradecimentos, eu conto a história de que eu esqueci como eu tive a ideia para o livro. Por acaso eu tinha escrito uma pequena nota para mim sobre a ideia. Mais tarde, eu esqueci tudo sobre ele -talvez não fosse tão importante assim.

FOLHA – Você já deve ter ouvido muitas histórias de pessoas com problemas por conta das pegadas digitais. Qual chamou mais sua atenção?
MAYER-SCHÖENBERGER – Foi o caso de uma mulher norte-americana de quase 30 anos que havia ficado alguns anos na prisão por algo que ela tinha feito aos 18 anos. Depois de sua libertação, ela se mudou para uma nova cidade, começou uma nova vida. Encontrou um marido, um emprego, seus filhos cresciam em uma família normal. Até que um colega de um filho “deu um Google” no nome dela e, por acaso, deu de cara com um site que colocava fichas policiais com foto de todos os prisioneiros do Estado nas últimas duas décadas. De repente, a vida dela desmoronou.

FOLHA – Se hoje as pessoas não têm direito a uma segunda chance, o que pode acontecer em dez, 20 anos?
MAYER-SCHÖENBERGER – Se nós não oferecermos a nós mesmos uma chance de escolha significativa em breve, gerações de nativos digitais vão crescer e assumir que a escolha não é possível. Eles vão adaptar suas vidas para as restrições impostas pela máquina. Isso seria terrível. Nós podemos moldar a máquina de qualquer maneira que quisermos. E, se quisermos, podemos fazê-la de uma forma que nos ofereça escolha!

Folha de São Paulo