Um horizonte geopolítico

RESUMO
O perfil do Brasil em torno de 2050 deve se delinear a partir de sua tradição diplomática de crescente autonomia em relação às potências hegemônicas, ora deslocadas para o Oriente, projetando-se num cenário geopolítico de consumo exacerbado, alta tecnologia e explosão demográfica que atualiza as teorias de Thomas Malthus.

OTAVIO FRIAS FILHO
A POLÍTICA EXTERNA brasileira sempre esteve voltada para dois objetivos básicos. Preservar a integridade de um território imenso e mal ocupado. E alcançar algum grau de autonomia perante as potências dominantes em cada época, sucessivamente Grã-Bretanha e Estados Unidos.
Esses objetivos foram decorrência inescapável da condição de país continental e periférico. Sem prejuízo de oscilações ocasionais, eles formam um eixo contínuo na tradição diplomática brasileira ao longo do Império e da República.
Nas três vezes em que o Império do Brasil se afastou dessa orientação essencialmente defensiva e foi à guerra, o motivo foi o Uruguai. Esse brioso país sempre padeceu das ambivalências de território-tampão entre os domínios de Espanha e Portugal, tendo trocado de mãos mais de uma vez. Em 1825-28 e em 1852, o Brasil moveu guerra contra a Confederação que viria a ser a Argentina para impedir que ela se reapoderasse do Uruguai. No episódio que deu início à Guerra do Paraguai (1865-70), o Brasil invadiu o Uruguai para evitar que o beligerante ditador do Paraguai, Solano López, tutelasse aquele país.
As intervenções ocorreram a pretexto de proteger interesses brasileiros nas guerras civis uruguaias (acredita-se que, em meados do século 19, um quinto da população do país vizinho fosse composto de brasileiros). Mas seu motivo de fundo era prevenir a reconstituição do antigo Vice-Reinado da Prata (Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia e norte do Chile) sob as rédeas de algum autocrata, em Buenos Aires ou Assunção, animado por inclinações expansionistas.

LUTA DOMÉSTICA A prioridade na política externa refletia o principal problema da política interna, ou seja, a ênfase na salvaguarda territorial decorria da luta doméstica, que marcou as primeiras décadas do Império, contra as forças centrífugas regionais que ameaçavam despedaçá-lo.
Tal prioridade, que moldou as relações externas do país, explica em parte a proeminência no cânone diplomático de José Maria da Silva Paranhos Jr., o barão do Rio Branco, responsável pela vantajosa delimitação de diversas pendências fronteiriças no longo período em que foi chanceler da República (1903-12). Mas Rio Branco foi também quem fixou a estratégia brasileira perante os Estados Unidos.
Com as devidas adaptações, não era uma política diversa daquela que, na maior parte do tempo, a elite dirigente do Império pusera em prática em relação aos britânicos. Tratava-se de estabelecer um relacionamento estreito e concessivo com a potência dominante, determinado desde logo por sua relevância, seja como fonte de investimentos, importações e empréstimos, seja como escoadouro das exportações agrícolas brasileiras.
Ao mesmo tempo, resguardava-se certa margem de manobra para contenciosos pontuais e ficava implícito que o Brasil adotaria a política que melhor lhe conviesse em face de seus vizinhos sul-americanos. Com a emergência dos Estados Unidos ao primeiro plano do poder mundial, nas últimas décadas do século 19, o eixo de gravidade da diplomacia brasileira se transferiu de Londres para Washington, na esteira da transferência do principal destino das exportações de café.

NACIONALISMO Na década de 1930, período de exacerbação nacionalista no mundo inteiro, o Brasil adotou uma política deliberadamente ambígua em suas relações com os Estados Unidos e a Alemanha, que rivalizavam pela supremacia econômica e militar. Getúlio Vargas tergiversou, procurando tirar proveito prático da conjuntura, indeciso diante dos pratos da balança, enquanto se precipitava o confronto que levaria à Segunda Guerra Mundial (1939-45). O interesse americano de utilizar bases aéreas no Nordeste selou os acordos (1942) pelos quais o Brasil se manteve na órbita dos Estados Unidos, em contrapartida a investimentos na siderurgia nacional.
Durante a Guerra Fria (1945-89), quando Estados Unidos e União Soviética, vivendo um estado de beligerância latente, dividiram o mundo em duas áreas de influência estanques, o Brasil continuou alinhado aos americanos. A configuração geopolítica apresentava, porém, duas novidades.
Em primeiro lugar, a União Soviética retomara a política de fomentar a revolução social em outros países, que passava a tutelar sempre que um grupo local vinculado a Moscou chegasse ao poder ou se convertesse ao bloco soviético, como aconteceu em Cuba no começo dos anos 1960.
Em segundo lugar, a paralisia determinada pela mútua capacidade de retaliação nuclear impelia as duas superpotências a “exportar” seu conflito para regiões distantes, em geral cenários de alguma guerra civil na qual cada uma das facções em confronto era atraída para um lado da polarização mais ampla. Assim, inúmeros Estados se tornaram, na prática, protetorados norte-americanos ou soviéticos.

ALINHAMENTO AUTOMÁTICO Devido a seu peso específico como país e por se encontrar numa área geográfica de baixa conflagração, não foi o caso do Brasil. Ao lado de governos, como os de Dutra (1946-51) e Castelo Branco (1964-67), que levaram o alinhamento com os Estados Unidos a um grau quase automático, houve outros, como os de Vargas (1951-54) e Goulart (1961-64), caracterizados por intensa confrontação. Nessas escaladas, um autêntico desejo de afirmação nacionalista mesclava-se à tática de apontar um bode expiatório externo como responsável pelos problemas do país.
Nas idas e vindas, o Brasil não deixou de cultivar o ideal de uma política externa mais autônoma. Os anos 1950-60 foram também uma época de descolonização na África e na Ásia, que gerou novo surto de excitação nacionalista em escala internacional.
Já esboçada de maneira quixotesca por Rui Barbosa na Conferência de Haia (1907), experimentada aos trancos e barrancos no canhestro episódio em que o Brasil abandonou a Liga das Nações (1926), a formulação de uma diplomacia dita afirmativa ou independente deu mais um passo rumo à maturidade no período Jânio Quadros (1961), no que terá sido a contribuição menos fugaz desse governante.
Mesmo na época da ditadura militar (1964-85), que, por sua natureza anticomunista, acentuava a posição brasileira de aliança subalterna em relação aos Estados Unidos, ocorreram desavenças, sobretudo no governo Geisel (1974-79), a propósito das pressões americanas contra o acordo nuclear Brasil-Alemanha, acompanhadas de interpelações quanto a violações de direitos humanos no Brasil.

AUTONOMIA A autonomia diplomática, que se buscava ampliar conforme a economia brasileira ganhava massa crítica, era cada vez mais expressa na multiplicação de relações externas, destinada a abrir novas frentes de comércio, e no apoio às reivindicações dos países em desenvolvimento perante os países desenvolvidos. Com a derrocada da União Soviética (1991) e a restauração do capitalismo na China, desapareceu o conflito ideológico Leste/Oeste, substituído por novas formas de antagonismo entre Sul (países em desenvolvimento) e Norte (países desenvolvidos).
No âmbito doméstico, uma autêntica democracia consolidou-se ao longo do decênio de 1980. Com a abertura comercial da primeira metade dos anos 1990 e a erradicação da inflação a partir de mea-dos daquela década, o Brasil completou a longa transição que o converteu em sociedade aberta e economia de mercado estável, semelhante, apesar da funda desigualdade social, às do mundo desenvolvido.
Se a questão ideológica se esvaziara, nem por isso desapareceram os contenciosos com os Estados Unidos, que cresceram conforme a posição econômica do Brasil se robustecia. A tônica da política externa tem sido desde então pressionar por relações internacionais mais equitativas e pela ampliação do centro decisório mundial, de maneira mais discreta no período Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e mais desenvolta, com resquícios de nostalgia ideológica, na gestão Luiz Inácio Lula da Silva (2003-10).

DEMOGRAFIA As transformações materiais que ocorreram em volume e rapidez vertiginosos no século 20 tendem a esmaecer as evidências de que o ritmo continua a acelerar e deve atingir o paroxismo nas próximas décadas. Trata-se de um fenômeno, antes de tudo, demográfico.
A humanidade chegou ao primeiro bilhão de habitantes por volta de 1800; ao segundo, em 1930; ao terceiro, em 1960. Hoje em 6,7 bilhões, estima-se que a população humana terá rompido a marca dos 9 bilhões por volta de 2050. (Apenas quatro países -Índia, Paquistão, Bangladesh e Nigéria- responderão por mais de 30% do incremento, sem que se perceba entre os ambientalistas a menor preocupação em deter esse “aquecimento” demográfico.) A partir da segunda metade do século, com a provável universalização de padrões de classe média, presume-se que o número global de habitantes se estabilize, até começar a decair lentamente no longínquo século 22.
Se ao menos as projeções para 2050 não estiverem muito erradas (e nada é menos confiável do que uma estimativa de longo prazo), isso implicaria um aumento de um terço na população mundial nos próximos 40 anos. Para ter noção do impacto na demanda por recursos naturais e aquilatar a elevação esperada nos níveis de consumo humano, basta ressaltar que, pela média das estimativas, no mesmo período, a riqueza mundial deverá crescer entre cinco e seis vezes, e que o gasto de energia poderá dobrar.

MALTHUS Num ensaio publicado em 1798, o economista britânico Thomas Malthus postulou que toda população se expande em escala geométrica até seu crescimento deparar com freios naturais (impostos pelo esgotamento de recursos e pela competição com outros seres vivos) e, no caso da espécie humana, artificiais: a guerra e o “vício”, a saber, sexo não reprodutivo. Por dois séculos, Malthus vem sendo tratado com sarcasmo por humanistas que resistem à dureza de seu vaticínio e o acusam de não ter reconhecido o alcance da revolução de produtividade que já se anunciava em sua própria era.
É impraticável vislumbrar que novos saltos de eficiência e novas formas de obtenção de energia serão viáveis até o panorama imaginário de 2050. Muito do atual catastrofismo ambientalista poderá se revelar precipitado conforme a tecnologia se desenvolva em aceleração crescente. Ao mesmo tempo, não faltam indícios de que a utilização de recursos, ao menos nos moldes atuais, se aproxima de um limite temerário. Os modernos anticoncepcionais acrescentaram um poderoso freio artificial à expansão humana, mas a polêmica com o fantasma de Malthus não foi encerrada.

GEOPOLÍTICA Em termos de evolução geopolítica, o processo decisivo será a transferência, que já teve início, do centro de gravidade mundial do Ocidente para o Oriente. Em meados do século, as duas maiores economias do mundo deverão ser China e Índia (cada uma delas detendo, então, segundo as projeções disponíveis, pelo menos o equivalente a todo o produto mundial de hoje, cerca de US$ 60 trilhões). Terão suplantado por larga margem os Estados Unidos e a União Europeia, cujas economias somadas atingiriam quando muito, por volta de 2050, a mesma cifra. Dada a forte integração econômica e cultural entre esses dois últimos blocos e tendo em vista a tendência histórica à formação de aglomerados cada vez mais vastos, é plausível conceber que se tornem uma espécie de federação do Atlântico Norte.
Em redor dessas três ou quatro grandes massas na geopolítica econômica, gravitará uma constelação de países de porte considerável: Austrália, Indonésia, Paquistão, Irã, Turquia, África do Sul, talvez Angola e Nigéria, provavelmente Argentina, Colômbia, México e Canadá. (Além de Japão e Rússia, que devem perder parte do peso específico que detêm hoje.) É verossímil que venham a se aglutinar em volta de um dos três ou quatro grandes blocos, arrastados pelas respectivas imantações geográficas e comerciais. Mas, em vez de um mundo dividido em belicosos impérios globais à maneira da Guerra Fria, como no romance “1984”, que George Orwell publicou em 1949, parece mais realista pensar numa complexa rede de ligações entrecruzadas.
Apesar do pesadelo malthusiano, que incitaria à luta em torno da exaustão de recursos naturais, é duvidoso que a hostilidade venha a ser o traço predominante nas relações entre as hiperpotências desse mundo multipolarizado. Suas economias estarão associadas de modo inextricável sobre uma mesma base capitalista e tecnológica. Seu poder estará contido pela emergência de toda uma camada de novos parceiros, também na posse de armas nucleares. A soberania do Estado decerto será mais limitada que hoje em relação a acordos e sanções internacionais. A opinião pública internacional será mais influente.
E já se disse que a guerra é uma atividade em que os jovens morrem enquanto os velhos negociam -mas a juventude vem se tornando avessa ao jogo. O mesmo hedonismo calculista que universaliza os padrões de classe média, favorecido pela melhoria na qualidade de vida e seu prolongamento propiciados pela ciência tecnológica, também enfraquece aos poucos os fundamentos emocionais da guerra -religião, pátria, etnia-, substituídos pela busca da felicidade individual. Até as regiões menos receptivas a essa mentalidade, como o mundo árabe, já estão impregnadas dela. É possível que as guerras que houver no futuro envolvam essencialmente máquinas.

POTÊNCIA TROPICAL A posição do Brasil nesse cenário, com todas as correções que o curso do tempo impuser, será singular. Quarta ou quinta economia do mundo, com um PIB estimado para 2050 em US$ 12 trilhões (seis vezes o atual) e uma população estabilizada em redor de 215 milhões, estará talvez isolado num patamar intermediário entre os gigantes e seus satélites. Será a única potência tropical, a única situada no hemisfério Sul, a única composta por população de maioria miscigenada – e a única, tudo indica, a ter renunciado a armamento nuclear.
Essa é uma perspectiva que coloca tremendos desafios à política externa, diferentes daqueles enfrentados no século 20 e com os quais estamos acostumados a pensar, ainda que seja útil buscar tanto inspiração nos melhores momentos como um lastro de coerência em nossa história diplomática. É como se o futuro tão postergado agora estivesse ao alcance das mãos. Por mais que possa afagar a autoestima nacional, é certo que essa perspectiva acarreta responsabilidades e problemas imensos.
De um ponto de vista menos remoto, voltado aos próximos dez ou quinze anos, o mais provável é que convenha ao Brasil perseguir uma política de ativa equidistância diante da polarização entre China e Estados Unidos, a exemplo do que procurou fazer em situações análogas no passado, e, ao mesmo tempo, persistir nos esforços em prol de alguma democratização negociada do poder mundial.

PROBLEMAS Mas outros problemas começarão a surgir. A força gravitacional da economia brasileira deverá atrair, por exemplo, ondas maciças de imigrantes, agora originários de países africanos e latino-americanos. O Brasil terá de desenvolver uma política em relação a esse tema delicado, sempre sujeito a impulsos contraditórios de assimilação e xenofobia.
Poderá o Brasil manter a singularidade de sua abstenção nuclear? Como poder regional inconteste, isso é o que mais lhe interessa; como nação que cultiva um ideal pacifista, também. Se o governo brasileiro detivesse armamento nuclear, cedo ou tarde algum dos paí-ses em sua órbita tenderia a imitá-lo, com o efeito mais provável de restringir, em vez de aumentar, o predomínio brasileiro. Além disso, a um país sem enfrentamentos graves à vista basta manter-se em condições tecnológicas de vir a desenvolver armas nucleares num lapso de poucos anos, caso isso se mostre inevitável.
Ao irradiar sua presença econômica e influência política pelo mundo, porém, uma potência emergente amplia seus contenciosos e fica mais exposta ao risco de conflitos. Até por isso, deverão ser duas as decorrências prováveis da abstenção nuclear. O Brasil terá de desenvolver recursos militares convencionais a fim de compensar a renúncia e garantir uma capacidade mínima de intimidação.
E sua política externa fará bem em evitar toda confrontação desnecessária (haverá uma crescente tendência de opinião isolacionista dentro do país), pautando-se mais do que nunca pela negociação pacífica dos antagonismos próprios e alheios. Será necessário estabelecer uma linha de coerência nítida e cuidadosa entre promoção dos direitos humanos e respeito à autodeterminação dos povos.

CULTURA E TECNOLOGIA Neste sumário de panoramas prováveis, em que é dado ao jornalista especular com uma liberdade vedada ao especialista, falta mencionar o que vem sendo chamado de “soft power”, o peso da influência cultural e tecnológica nas relações entre países. Uma opinião pública internacional, que se esboçou nas campanhas abolicionistas do século 19 e continuou a se desenvolver na esteira dos meios de comunicação de massa, será fator decisivo, talvez preponderante, na era digital. Qualquer poder nacional será expresso, cada vez mais, na valorização de sua cultura e no respeito que seu exemplo conquistar junto à opinião pública interligada em escala mundial.
Toda política externa aspira a conciliar a projeção dos interesses do país com a adoção de princípios e normas universais, válidos para todos. Poderia o Brasil dar uma contribuição inédita no rumo da consecução desse ideal, com base em seu histórico de resolução pacífica de conflitos, na plasticidade de sua confluência étnica e cultural, no caráter singular de sua condição geopolítica?
Reunião de contrários num amálgama original, essa utopia brasílica -recorrente desde as premonições de Caminha e Vieira até os sistemas explicativos de Gilberto Freyre e Oswald de Andrade, chamada de “Roma tropical” nas miragens ainda recentes de Darcy Ribeiro- está de novo no horizonte. Muitas décadas e o peso acachapante da “Realpolitik” nos separam dela.

“A preservação da integridade de um território imenso e mal ocupado e a busca de algum grau de autonomia perante as potências formam um eixo contínuo da tradição diplomática brasileira”

“Nas idas e vindas, o Brasil não deixou de cultivar o ideal de uma política externa mais autônoma, que se buscava ampliar conforme a economia ganhava massa crítica”

“Por dois séculos, Malthus vem sendo tratado com sarcasmo por humanistas que resistem à dureza de seu vaticínio; não faltam indícios de que a utilização de recursos se aproxima de um limite temerário”

“O hedonismo calculista que universaliza padrões de classe média enfraquece os fundamentos emocionais da guerra – religião, pátria, etnia; é possível que as guerras que houver envolvam essencialmente máquinas”

“A política externa fará bem em evitar toda confrontação desnecessária; será preciso estabelecer uma linha de coerência entre promoção dos direitos humanos e respeito à autodeterminação dos povos”

Fonte: Folha de São PAulo