“Se caísse o avião da Azul, metade do cinema nacional acabava”, brincou Júlio Uchoa, da Lereby, produtora de Daniel Filho. Morbidez à parte, o produtor tinha razão. No voo estavam, além dos produtores do maior vendedor de ingressos brasileiro, executivos da Globofilmes e das principais produtoras nacionais. Isso sem falar nos representantes do cinema autoral, como Ruy Guerra. Paulínia, município de 60 mil habitantes a 120 quilômetros da capital, transformou-se em um pote de ouro.

Em dois anos, a cidade investiu R$ 9 milhões em 20 longas. Da fazenda de “O Menino da Porteira” ao enterro do protagonista de “Jean Charles”, várias cenas foram filmadas ali. Até os ataques do PCC foram transferidos para lá, no inédito “Salve Geral”. A sensação de quem chega a Paulínia é a de que uma nave espacial chegou ali e, com artes e manhas da ficção científica, fez surgir um teatro de causar inveja à Sala São Paulo, um prédio envidraçado que cairia bem ao Reichstag e uma escola de cinema onde tudo cheira a novo. Tal estrutura é fruto da lei que transfere para o Fundo Municipal de Cultura 1,5% do total da arrecadação de ISS e ICMS do município que abriga um polo petroquímico.

Neste ano, o Fundo deve receber R$ 15 milhões. Apenas a realização do 2º Festival de Paulínia, aberto na última quinta-feira, consumiu R$ 5 milhões. Para se ter uma ideia, o tradicional Festival de Brasília tem orçamento de R$ 2,3 milhões. A cifra chamou a atenção do Ministério Público que, em um inquérito civil, argumenta que a cidade gasta esses milhões em detrimento de investimentos sociais. “Gastamos 23% do orçamento em saúde e 33% em educação”, defende-se o prefeito, José Pavan Junior (DEM). O festival tem 14 longas inéditos e um tapete vermelho que, segundo um dos convidados, é maior que o de Cannes e Veneza somados. Entre as celebridades da abertura estavam Cauã Reymond, Débora Bloch, Selton Mello e Lázaro Ramos. Para dividir o espetáculo com a população, a prefeitura montou duas arquibancadas. Mas os assentos ficaram quase vazios. O que levou boa parte do cinema brasileiro à festa foi o edital de produção que distribuiu R$ 9 milhões entre 10 filmes. Ao todo, 44 produtores mandaram projetos. Desses, 22 foram chamados para a defesa oral e 10 premiados. O edital estipula que 40% do orçamento deve ser investido na cidade e a equipe deve passar 25% do tempo de filmagem ali. “Não nos cabe entrar em critérios artísticos. Queremos saber quantas externas o filme tem e o quanto mobiliza a cidade”, diz Ivan Melo, diretor do festival.

A comissão premiou filmes dos mais variados feitios, como “As Vidas de Chico Xavier”, de Daniel Filho, e “Transeunte”, de Erik Rocha, filho de Glauber. “Demorei um pouco para acreditar que Paulínia era um veículo real de financiamento”, diz Mauricio Andrade Ramos, da VideoFilmes, produtora de “Transeunte”. “Quando cheguei, questões arquitetônicas à parte, fiquei impressionado.” “As pessoas estão acreditando que isto não acabará amanhã”, diz o secretário de Cultura, Emerson Alves, escaldado com os olhares de desconfiança. Alves diz, ainda, não aguentar mais a pergunta sobre o porquê de a cidade, a despeito do gigantismo do polo, não ter sala de exibição. “Exibição não gera emprego. Estamos formando mão de obra local.” Alves, antes de se tornar secretário, foi diretor de finanças do prefeito anterior, Edson Moura (PMDB), idealizador do projeto.

Perguntado sobre as irregularidades daquela gestão, que responde a processos por improbidade administrativa, o secretário diz que esses problemas não têm nada a ver com o polo. “Os processos dizem respeito a procedimentos anteriores à lei de responsabilidade fiscal”, diz o secretário. Ele aproveita a referência ao ex-prefeito para explicar a origem do projeto grandioso. “O Edson [Moura] veio do Nordeste e não teve acesso ao cinema. O glamour tem a ver com a ideia fixa que ele tinha de tornar a cidade famosa.”

Folha de São Paulo