A AUSÊNCIA de um projeto nacional aparece dramaticamente no setor elétrico. Nele, fizemos muitas opções corretas durante décadas, usando com inteligência a nossa dotação de recursos e desenvolvendo uma tecnologia que nos colocou na vanguarda mundial.

Baseamos nossa capacidade de geração em usinas que usam duas coisas gratuitas e renováveis, a água das chuvas e a força da gravidade, e que operam sem poluir. Sua vida útil é ilimitada, e os equipamentos só são trocados depois de cerca de 50 anos de uso. Como a quantidade de chuvas varia, fizemos reservatórios capazes de acumular “combustível”, ou seja, água, durante cinco anos, mesmo em situações de seca.

O sistema, com mais de 4.000 km de extensão norte-sul, foi interligado por mais de 90 mil km de linhas de transmissão. Graças a isso, reservatórios situados em diferentes bacias hidrográficas, sem ligação física entre si, passaram a funcionar como se fossem vasos comunicantes, possibilitando racionalizar o uso da água e regularizar o curso dos rios em grande parte do país. Nossa capacidade de geração elétrica, vista como um todo, passou a ser 25% superior à soma da capacidade das usinas, vistas isoladamente.
Concebemos um sistema de planejamento que nos permitia muita folga nas decisões de operação e expansão do sistema. Passamos, enfim, a ter energia segura e barata. Os benefícios seriam crescentes.

Pois, amortizado o investimento inicial, as usinas hídricas produzem energia quase de graça. Como a intensidade de consumo de energia no PIB tende a cair e a população vai se estabilizar em torno de 2040, o Brasil, se fizesse as opções corretas, poderia gerar eletricidade suficiente a custo quase zero, em usinas amortizadas, por tempo indefinido, a partir de meados deste século. Como ninguém pensaria em ofertar energia de graça, o país teria construído uma gigantesca e permanente fonte de renda para aplicar onde quisesse.
Seria um pré-sal da eletricidade, mas inesgotável. Teríamos de destinar 2,1% do território a esse projeto.

Tudo isso se perdeu. Na década de 1990, a existência de um setor elétrico nacional, estatal, planejado e eficiente foi vista como uma afronta à modernidade neoliberal. A combinação de ideologia e “business” impôs que o sistema público cooperativo transitasse para um sistema privado mercantil. Tomada tal decisão, as vantagens do sistema brasileiro -o funcionamento em rede, a base hídrica, o horizonte de longo prazo, o papel ativo das linhas de transmissão, o fornecimento de energia barata- tornaram-se empecilhos, pois não se ajustavam à lógica de operação do capital privado. Começou a obra de destruição.

De lá para cá, assistimos à desgraçada luta dos governos contra nossas vantagens comparativas e contra o conhecimento técnico que acumulamos. No caso de FHC, foi uma luta explícita, que só cedeu quando conseguiu levar o país ao apagão de 2001. No caso de Lula, é uma marcha ambígua, cheia de acomodações, mas que não altera a orientação estratégica do antecessor. A matriz hídrica está sendo substituída pela térmica, poluente e cara.
Cada vez mais híbrido, o sistema torna-se cada vez mais complexo, com crescentes custos de transação.

Perdeu confiabilidade e capacidade de planejamento. Virou o paraíso dos lucros especulativos, pois quem vende energia não precisa mais, necessariamente, gerá-la. Tudo isso se reflete nas tarifas, agora as mais onerosas do mundo.
A história recente do sistema elétrico é a história da impune destruição de uma enorme potencialidade do Brasil.

CESAR BENJAMIN , 55, editor da Editora Contraponto e doutor honoris causa da Universidade Bicentenária de Aragua (Venezuela), é autor de “Bom Combate” (Contraponto, 2006). Escreve aos sábados, a cada 15 dias, nesta coluna.