A nova aposta de Carlos Ghosn
Ele ressuscitou a japonesa Nissan e enfrentou a crise financeira mundial. Agora Ghosn, o CEO brasileiro mais bem pago do mundo, quer liderar a revolução do carro elétrico com o Leaf, o primeiro do mundo a ser produzido em massa. Conseguirá?
Fernando Valeika de Barros
Aos 56 anos, Carlos Ghosn é o executivo de origem brasileira mais bem-sucedido do mundo. Em 2009, seu salário somou o equivalente a R$ 21,4 milhões, o maior valor anual pago a um dirigente de empresa aqui, na França ou no Japão. Ghosn veio de longe. Nascido em Guajará-mirim, na fronteira de Rondônia com a Bolívia, nos confins da Amazônia, filho de um brasileiro descendente de libaneses, tornou-se CEO da Renault-Nissan, uma das cinco maiores montadoras de automóveis do mundo, que emprega 305 mil pessoas. No primeiro semestre deste ano, as duas marcas produziram 3,35 milhões de automóveis e faturaram US$ 73,8 bilhões de dólares. Desse volume, cerca de dois terços saem das linhas de montagem do braço japonês do grupo, a Nissan, que estava moribunda em 1999, quando Ghosn foi despachado para Tóquio para lhe dar um choque histórico de gestão, que a fez voltar a ser competitiva. Dono de um estilo objetivo, acumula desde 2005 a presidência-executiva da Renault, que além da marca francesa, controla as operações da coreana Samsung e da romena Dacia.
Em tempos de rescaldo da crise econômica mundial, seu mandato à frente da montadora francesa foi renovado por mais quatro anos por decisão dos acionistas. Em abril passado, 83,8% aprovaram a sua gestão e recomendaram a continuidade. Não é pouca coisa, considerando que as montadoras sob seu comando competem globalmente. São indústrias com tecnologia de ponta, que têm todos os dias a eficiência testada e necessidade de investimentos maciços. Desenvolver um carro novo exige investimentos entre US$ 300 milhões e US$ 500 milhões. A decisão de instalar uma linha de montagem para produzir 250 mil carros custa US$ 1 bilhão. Além disso, acertar mais do que a concorrência é uma questão fundamental em um segmento tão disputado.
No caso do hiperativo Ghosn, os planos para crescer são complexos e globais. Incluem alavancar a produção de carros ultrabaratos na Índia, em parceria com a local Bajaj; ressuscitar a Avtovaz, um mastodonte da burocracia russa, mas com potencial de produzir 1 milhão de automóveis em 2017; e partir para a conquista de mais compradores no mercado brasileiro, com uma ofensiva de novos produtos, como o compacto Nissan March e o utilitário esportivo Duster, da Renault, previstos para chegar em 2011 com a missão de fazer crescer a fatia de mercado do grupo, por aqui, que hoje está em 6%, pouco mais de metade da meta planejada.
Mas a missão de Ghosn na Renault-Nissan vai muito além de inflar as vendas. Ele pode fazer história. O executivo foi o primeiro na indústria automobilística a acreditar que os carros elétricos poderão, sim, se impor como uma solução de mobilidade para as massas. O primeiro automóvel elétrico produzido em série do mundo é o hatchback Nissan Leaf, que começará a ser vendido nas concessionárias americanas por um valor entre US$ 17.280 e US$ 25.280, dependendo dos incentivos concedidos por governo ou empresas. Espaçoso e eficiente, esse modelo tem tudo para fazer sucesso e virar símbolo de uma era preocupada com a sustentabilidade, como foi o Ford T, que rompeu um paradigma por ser o primeiro carro a sair de uma linha de montagem, em 1908. “Começou uma nova etapa na história dos automóveis, silenciosa e respeitadora do meio ambiente. E seremos os líderes dessa revolução da mobilidade com zero emissão,” disse Ghosn no Salão do Automóvel de Paris, em outubro, quando apresentou o Leaf ao mundo. “Nossos concorrentes podem imaginar que mobilidade com emissão zero seja uma solução para o futuro, mas para a nossa empresa isso é para já”, disse Ghosn na primeira de duas longas entrevistas concedidas a Época NEGÓCIOS. Segundo ele, até 2012 vem muito mais por aí. Resultado de um investimento de US$ 5,2 bilhões, serão lançados outros sete modelos elétricos com as marcas Nissan, Renault e Infiniti. Do sedã Fluence EV, com vendas previstas de 100 mil unidades, a outros menos convencionais, como o compacto Zoe ou o espichado Land Glider. Nunca antes na história da indústria automobilística um construtor tomou uma decisão estratégica tão arrojada.
BONDE PERDIDO
Até a chegada do Leaf, o mundo dos automóveis elétricos se dividia em duas categorias: a dos esportivos, como o Tesla Roadster, vendido a US$ 92 mil a milionários ou atores de Hollywood; e a dos pequenos e mesmo assim caros, como o Mitsubishi i MiEV, um compacto vendido no Japão e na Europa pelo dobro do preço do Nissan. Quando Ghosn alfineta a concorrência dizendo que carro elétrico não é coisa do futuro, tem na mira rivais como o recém-lançado Chevrolet Volt, um híbrido com motor a gasolina e baterias. Custa US$ 33,5 mil, já com a isenção de impostos, e pode rodar até 80 quilômetros com uma carga. Na opinião do presidente da Renault-Nissan, trata-se de uma solução cara e limitada. Ele acha que se as baterias estão a caminho de se tornar ainda mais eficientes, a melhor aposta é ter logo a emissão zero e decretar o fim dos escapamentos.
Carlos Ghosn começou a enxergar a oportunidade de assumir a liderança na produção de carros ecologicamente corretos em 2006, quando introduziu o Projeto Nissan Verde 2010. Naquela época, a empresa preparava-se para lançar seu primeiro modelo híbrido, o sedã Altima, com tecnologia comprada da Toyota. Há uma década, a rival tornou-se a líder na produção de modelos desse tipo, com o Prius. A novidade é que entre os novos projetos havia um protótipo 100% elétrico, movido a baterias de íon de lítio. “Fomos muito criticados por termos nos atrasado e perdido o bonde no segmento dos carros híbridos. Por decisão de Ghosn decidimos partir em busca da próxima oportunidade”, diz Larry Dominique, o chefe de planejamento de produtos da Nissan nos Estados Unidos.
Ghosn pode entrar para a história ao apostar que os elétricos serão
a melhor solução de mobilidade para as massas
UM EMPURRÃO DA CRISE
O projeto Leaf tinha metas específicas. O carro precisava ser atraente, espaçoso, dar sensação de solidez e chegar com um preço acessível para venda em grande escala. Apesar de ambiciosa, com o apoio do chefe, a ideia deslanchou rapidamente. Em maio de 2008, Ghosn anunciou que lançaria o modelo em menos de dois anos, nos Estados Unidos e no Japão, depois no mundo. Em agosto de 2009, a versão final do hatch a baterias foi revelada, durante a inauguração da nova sede da Nissan, em Yokohama. “Os engenheiros diziam que ainda havia coisas a melhorar, que seria melhor esperar mais um pouco”, diz Ghosn. “Mas achei que era a hora de colocar o projeto do nosso carro elétrico para a frente.”
A maior recessão econômica dos últimos tempos deu empurrão na oportunidade para produzir carros mais limpos. A crise atingiu em cheio as montadoras, de um lado pela alta do preço do petróleo, do outro pela falta de crédito e liquidez. Os 69 milhões de veículos produzidos em 2007 encolheram para 55 milhões nos 12 meses seguintes. Com dinheiro curto, seguiram-se semanas de insegurança. Para evitar uma quebradeira, governos como o de Barack Obama, nos Estados Unidos, Angela Merkel, na Alemanha, e Nicolas Sarkozy, na França, abriram a carteira para socorrer as indústrias. Mas estipularam uma condição: elas deveriam projetar automóveis mais econômicos e menos poluentes nos próximos anos. Fazendo jus à agilidade que o tornou célebre, Carlos Ghosn fez uma dupla aposta: carros elétricos e mercados emergentes. Seu objetivo é fazer as empresas que comanda saírem da crise ainda mais fortes do que quando entraram. Se o plano der certo, abrirá caminho para começar a mudar o reinado do petróleo, que hoje move 98% da frota mundial. Diferentes previsões indicam que dentro de oito anos haverá uma fatia maior de carros híbridos e entre 3% e 10% de automóveis puramente elétricos no mercado. Como é de se esperar, Ghosn está na ponta dos mais otimistas com a tecnologia. “O Leaf será um instrumento para a conquista desse mercado”, diz o português Carlos Tavares, vice-presidente da Nissan para o continente americano. “Dos 20 mil primeiros clientes do modelo nos Estados Unidos, 90% nunca tiveram um carro da nossa marca.” O desafio agora do Leaf é gerar lucro. “Prejuízo é proibido em uma empresa que já esteve à beira da falência”, diz Tavares.
O BERÇO DO LEAF
Por enquanto apenas produzido na linha de montagem japonesa de Opama, o elétrico da Nissan será feito também nos Estados Unidos e na Europa. Será a primeira investida de uma estratégia que pretende lançar mais sete modelos movidos a baterias. Ghosn acredita que automóveis elétricos poderão representar 10% das vendas mundiais em 2020
Carlos Ghosn Bichara
Idade_56 anos
Onde nasceu_Guajará-mirim (RO)
Cargo_Presidente executivo da Renault-Samsung-Dacia e da Nissan-Infiniti, comanda 305 mil funcionários
Salário_Em 2009, recebeu o equivalente a R$ 1,77 milhão/mês
Formação_É engenheiro graduado pela Polytechnique e pela École de Mines, ambas em Paris
Família_Casado, pai de quatro filhos
TERAPIA DE CHOQUE
Em 32 anos de carreira, Carlos Ghosn já enfrentou várias crises e comandou viradas espetaculares. Mas, segundo ele próprio, nada se compara ao trabalho de reconstrução da Nissan, há 12 anos. “Ninguém considerava viável um executivo ocidental desembarcar no Japão e promover uma reviravolta nesta companhia”, afirma. Em 1999, a montadora japonesa estava quase arruinada, mergulhada em dívidas de US$ 19,4 bilhões. Não só a cultura do lucro deixara de ser levada a sério ali, como havia também um péssimo controle dos custos. Incapaz de reagir, a Nissan tinha perdido o foco no estilo de seus carros e também a capacidade de reação. Afundava a cada dia. Dos 43 modelos que fabricava naqueles tempos, apenas quatro davam dinheiro. A marca podia construir 2,4 milhões de carros no Japão. Mas só operava com 53% da capacidade. Dinheiro era queimado em 1.394 participações em outras empresas, inclusive concorrentes, como a Subaru. Funcionários eram promovidos por idade e não por mérito. Gerentes de fábrica não sabiam dizer quanto custava produzir um carro. Era uma situação tão degradada que outros executivos experientes no mundo das montadoras, com o americano Jac Nasser e o alemão Jürgen Shremp, da DaimlerChrysler, também sondados para assumir a Nissan, saíram da mesa de negociações sem nem ouvir uma oferta formal.
Quando Ghosn instalou-se na mesa de seu escritório no bairro de Ginza, em Tóquio, encontrou uma empresa que necessitava de uma terapia de choque. “A recuperação precisa ser rápida e eficaz, mesmo que exija sacrifícios”, disse, há 11 anos, em Tóquio, um dia depois de anunciar o fechamento de cinco linhas de montagem e a demissão de 14% dos trabalhadores da empresa japonesa. Isso em um país em que empregos eram considerados eternos. Ele afirma que se o plano de reestruturação falhasse, a situação seria bem pior, com o fim da empresa. Começou, então, a agir. Das 24 plataformas que havia em 1999, sobraram dez, boa parte compartilhada com a parceira francesa. Motores V6 a diesel, atividade em que os franceses eram mais fortes, começaram a ser desenvolvidos por eles, enquanto os japoneses concentraram-se em modelos desta cilindrada, a gasolina. Sinergias entre as duas empresas em compras, por exemplo, geraram uma economia que em 2009 chegou a US$ 2,1 bilhões. A Nissan não só sobreviveu ao baque, como deu a volta por cima.
Em 32 anos de carreira, Ghosn enfrentou várias crises. Mas nada se
compara, segundo ele, ao trabalho de reconstrução da japonesa Nissan
TORMENTA FINANCEIRA
Durante o Plano de Recuperação da Nissan, Ghosn tornou-se conhecido por cortar custos, fazendo jus a um de seus apelidos: “Le Cost Killer”. Sempre foi direto ao ponto. “Quando um diretor olhar num espelho deve ver uma redução de 25% a 30% nas suas despesas”, dizia. “Trata-se de uma questão de sobrevivência.” Equipes foram formadas por quadros de alto potencial que vinham de diferentes departamentos, como engenharia, finanças, produção, compras. Ghosn deu três meses para que essas equipes, formadas por cerca de 500 funcionários de nível gerencial, identificassem os problemas e apresentassem ideias para serem colocadas em ação. Antes, cada um acusava o outro pelos fracassos. Juntos, mudaram a gestão da companhia. “O plano simplesmente não daria certo se fosse implementado por um consultor externo, se não tivéssemos um prazo determinado, se não fôssemos transparentes e não houvesse comunicação clara”, recorda Ghosn.
Com carisma e experiência para gerir situações complicadas, Carlos Ghosn enfrentou sua segunda tormenta financeira em 2008. A metáfora que usa para diferenciar as duas crises ajuda a entender suas proporções. Diz Ghosn: “Em 1999, a Nissan era como uma casa infestada de cupins, que vinha se deteriorando com o tempo. Mas, com a crise financeira mundial, nos sentimos como se um incêndio tivesse tomado conta da casa”. Em fevereiro do ano passado, em Tóquio, um carrancudo Ghosn revelou o primeiro prejuízo de sua gestão na Nissan: US$ 2,9 bilhões negativos. Quatro dias depois, na França, vestindo um terno preto risca de giz, ele anunciou vendas de apenas 2,38 milhões de carros Renault, quase 1 milhão a menos do que prometera. Levou bomba também na margem de lucro, naquele ano de apenas 0,6% – um décimo dos 6% esperados. Foi então declarada uma cruzada em busca de fluxo de caixa positivo.
Sua receita para dar uma nova volta por cima? Estabelecer prioridades – como a entrada em mercados emergentes, com maiores chances de recuperação – e a continuidade dos projetos de emissão zero, como o Leaf. Tudo acompanhado muito de perto, para evitar situações inesperadas. Passou de novo a faca em custos de engenharia, compras e produção. Para não queimar dinheiro com estoques (no caso da Renault, estimados em 6,5 bilhões de euros em junho de 2008), foi colocado em prática um novo sistema de distribuição que encurtou o tempo entre a produção e sua entrega, esvaziando os pátios.
Dividendos pagos a acionistas e bônus dos executivos foram cancelados (com isso Ghosn deixou de embolsar o equivalente a R$ 3 milhões por ano em sua remuneração). “A ordem era economizar cada centavo que pudéssemos”, disse a Época NEGÓCIOS Thierry Moulonguet, um dos homens de confiança de Ghosn. O investimento em pesquisa e desenvolvimento sofreu um corte menor, que girou em torno de 15%. A intenção disso? Preservar o futuro.
Ótimo comunicador e conhecido pela impaciência para atingir os objetivos, Carlos Ghosn nasceu duas vezes no Brasil. A primeira em Guajará-mirim, em 1954, neto de Bichara Ghosn, cristão libanês que veio para o país aos 13 anos e formou um conglomerado empresarial que incluía uma companhia de aviação, que por herança acabou nas mãos de Jorge, seu pai. Quase três décadas depois, já formado em engenharia pela Escola Politécnica de Paris, e naturalizado francês, voltou ao Brasil para comandar a filial da fabricante francesa de pneus Michelin, considerada ingovernável, em pleno período de hiperinflação. Naqueles tempos, o dirigente de uma empresa no país precisava ter flexibilidade e muito jogo de cintura para não se perder. E autonomia. “Havia intervenções de pessoas da França que não sabiam nada da situação que se vivia no Brasil”, contou na autobiografia intitulada Cidadão do Mundo. Ghosn arrumou a casa e, depois da reforma, foi cuidar das operações da Michelin nos Estados Unidos.
No início de 2009, diante de uma nova crise, desta vez de dimensões mundiais, Ghosn sacou novamente sua receita, baseada em lógica e prudência. Na Renault-Nissan, foram salvos da tesoura os projetos estratégicos: a linha de automóveis com emissão zero, os modelos de alto volume e os investimentos para aproveitar a oportunidade de crescer em mercados emergentes, principalmente na China, Brasil, Índia e Rússia. Por isso o Leaf e os outros elétricos passaram quase incólumes pelo furacão, assim como a inauguração de linhas de montagem de grande volume, como a da Nissan em Chennai, na Índia, inaugurada este ano, e a da Renault em Tânger, no Marrocos. Cada uma terá capacidade para produzir 200 mil veículos. Daqui a três anos, serão 400 mil em cada planta. “Recusamos a sacrificar o nosso futuro por problemas de hoje”, diz Ghosn. Por esse raciocínio, o potencial para crescer pode estar em países que sentiram menos o baque da crise. E em uma mobilidade mais limpa.
Nos carros elétricos, uma coincidência ajudou. Desde 1992, a Nissan trabalha com a NEC, fabricante de baterias de íon de lítio. Quando Ghosn desembarcou no Japão, sete anos depois, a montadora já tinha seus primeiros protótipos movidos a eletricidade. Essa pesquisa era uma das únicas inovações da empresa japonesa à beira da falência. Ghosn encarou a NEC como um ativo valioso e decidiu conservá-la. Milhões de telefones celulares e laptops equipados com baterias de íon de lítio e bilhões de dólares em pesquisa mostraram que esses eram os melhores e mais confiáveis acumuladores de energia disponíveis. Uma década depois, os engenheiros da NEC reinventaram as formas das baterias para carros: em vez de cilíndricas – e difíceis de serem acomodadas– tornaram-se esguias como lâminas, com a possibilidade de serem recarregáveis durante oito anos ou 165 mil quilômetros. O pacote de baterias do Leaf, atualmente com 215 quilos, pode ser acomodado embaixo do banco dos passageiros. Hoje as baterias têm 1.100% a mais de capacidade para estocar energia do que as pioneiras, de 1992. E custam 16 vezes menos.
DIRETO AO PONTO
Ghosn fala a operários da linha de montagem da Renault-Nissan no Paraná: seu estilo pragmático de perseguir o lucro, mesmo quando fechou linhas de montagem, como na Bélgica e no Japão, lhe valeu o apelido de Le Cost Killer (o cortador de custos)
LIGADO NA TOMADA
Na década passada, a missão de Ghosn foi fazer a francesa Renault dar lucro e salvar a japonesa Nissan da bancarrota. Agora ele poderá entrar para a história do automóvel com o Leaf, o primeiro carro elétrico com preço acessível para muitos
POPULAR COM ESTILO ORIENTAL
Concebido no Japão e fabricado em países emergentes como Tailândia, Índia e México, o Nissan March chegará por aqui em 2011. Faz parte da ofensiva de lançamentos da marca japonesa e da sua parceira Renault. O objetivo de Ghosn: conquistar 10% do mercado brasileiro
EM CAMPO
A expectativa é que essa evolução continue. Estima-se que, em dez anos, as baterias para automóveis custarão a metade do preço atual (entre US$ 10 mil e US$ 15 mil), diminuam de tamanho e sejam 50% mais eficientes. “As baterias da Renault-Nissan podem colocar a empresa claramente em uma posição de liderança”, diz o consultor alemão Wolfgang Bernhart, da Roland Berger. Uma nova geração de baterias da NEC, já em teste, elevaria a autonomia do Leaf dos atuais 166 para 310 quilômetros. Mesmo assim, nem mesmo Ghosn acredita que os automóveis elétricos serão para todos. “Os carros a bateria serão uma das soluções para a mobilidade, mas não a única. Dividirão espaço com carros a petróleo, cada vez melhores, com os de biocombustíveis e os de hidrogênio.” Para não perder clientes, um construtor deverá estar envolvido em muitos produtos e mercados diferentes. Tudo isso custa muito dinheiro e parcerias são fundamentais.
Para obter sucesso como o executivo número 1 de um grupo de montadoras fincado nos quatro cantos do mundo, Carlos Ghosn tem seus métodos. Sua agenda é concentrada nas mãos de Kiho Ohga, uma assistente executiva que exerce a função de sua chefe de gabinete. De Tóquio, Kiho comanda uma equipe que organiza as missões do chefe pelo mundo. Esse trabalho é quase sempre um quebra-cabeça. Diferentemente dos presidentes que gostam de comandar a partir de uma sala, Ghosn prefere, sempre que pode, tomar pulso da situação em campo. Os deslocamentos são feitos em um avião Gulfstream V, com autonomia para cruzar os oceanos.
MULTA PARA OS QUE POLUEM
Normalmente, ele passa entre dez e 15 dias do mês em Paris, na sede da Renault, entre uma semana e dez dias no QG da Nissan, em Yokohama, nos arredores de Tóquio, alguns dias nos Estados Unidos ou percorrendo linhas de montagem e distribuidores ao redor do planeta. Preparadas por 12 equipes que agrupam funcionários de áreas diferentes, as estratégias da Renault-Nissan são discutidas uma vez por mês. Conhecido pela disciplina, seu estilo é o de delegar funções à equipe. Gosta de dizer que o papel de um CEO é motivar e dar condições aos seus funcionários para que cumpram as metas. Cobra resultados rapidamente. “Não gosto de jogo político, mas de quem faz acontecer”, diz Ghosn.
Em 2000, o vice-presidente da Nissan para mercados emergentes, Toshiyuki Shiga, recebeu um telefonema de Ghosn. O chefe anunciou que o havia promovido, antes de lhe oferecer uma batata quente: era preciso construir em dois meses uma estratégia clara para a Nissan entrar na China em condições de ganhar o jogo. Foi assim que nasceram, sucessivamente, a joint venture com a local Dongfeng e uma linha de montagem na província de Cantão. Este ano, a operação chinesa espera vender 860 mil carros. Deverá chegar a 1,2 milhão até 2012. Ou seja, Shiga fez acontecer.
A velocidade com que Ghosn impõe transformações muitas vezes tem um preço alto. Em 2001, a Nissan decidiu construir uma nova linha de montagem para picapes e utilitários esportivos em Canton, no Mississipi. Comandados por poucos veteranos, os operários eram novatos e isso acabou refletindo-se em problemas na qualidade dos veículos. Segundo um relatório publicado pela consultoria J.D. Power, que analisa defeitos de carros novos, em função dos problemas a Nissan caiu do sexto para o 11º lugar no ranking. Ao seu estilo, Ghosn mandou 220 engenheiros do Japão e da primeira linha de montagem da Nissan nos Estados Unidos, a de Smyrna, no Tennessee, para analisar o problema. Depois foi buscar na concorrente Toyota um especialista em controle de qualidade: Douglas Betts. “O melhor caminho para resolver um defeito é reconhecer que ele existe e tomar ações rápidas e pontuais para consertá-lo”, diz Ghosn. Agiu da mesma forma quando precisou conter uma onda de suicídios no Technocentre, o centro de engenharia da Renault em Guyancourt, nos arredores de Paris. Em três meses, a partir de dezembro de 2006, três trabalhadores se mataram alegando excesso de trabalho. Ghosn tomou ações pontuais e rápidas. “Tentamos identificar as razões da frustração que levou às mortes. Mudamos a gestão, a comunicação”, diz ele. “Não tentamos esconder, muito menos ignorar o fato. Havia uma carga de trabalho excessiva.”
Em 2006, quando deu sinal verde para a produção do Leaf, a necessidade de fabricar modelos capazes de emitir menos CO2 já era um tema popular. E não só entre os ecologistas. Na França, as regras ficaram rígidas para carros poluidores. Modelos que emitem mais de 160 gramas de CO2 por quilômetro rodado pagam 200 euros de taxa. Com 260 gramas (o que solta o escapamento de um esportivo como a Ferrari), a taxa vai para US$ 3,9 mil. Carros menos poluidores, como o Toyota Prius (104 g/km de CO2) ganham um subsídio de 700 euros na hora da compra. Pressões semelhantes existem nos Estados Unidos, no Japão e na Alemanha. As leis ficarão ainda mais rígidas a partir de 2015, e isso obrigou as montadoras a se mexerem em busca de inovações.
Para facilitar a chegada dos automóveis mais limpos, muitos governos decidiram mobilizar recursos para fazer a mudança acontecer, o que deve ajudar – e muito – modelos como o Leaf. Nos Estados Unidos, os incentivos começam com US$ 7,5 mil dos cofres federais para o carro e US$ 1 mil para o carregador (50% do seu custo para o consumidor). Estados como Califórnia e Geórgia acrescentam mais US$ 5 mil ao desconto. Assim, dos US$ 32.780 originais que um Leaf custa, seu preço cai para US$ 20.280. Se o comprador viver em cidades como Fresno, no Vale de San José, na Califórnia, levará o carro para casa pagando US$ 17.280 (a prefeitura banca US$ 3 mil para tentar aliviar a atmosfera).
Nessa onda, empresas como a subsidiária americana da Sony ou os Estúdios Fox entram com US$ 5 mil de isenção para os funcionários que adquirirem um carro elétrico. “Muitos governos e empresas entenderam que essa ajuda será fundamental para popularizar o carro elétrico até que o preço das baterias seja mais acessível”, diz Simon Sproule, vice-presidente de comunicação mundial que a Nissan foi buscar na Microsoft. Na Inglaterra, o governo ajuda na compra de um carro elétrico com o equivalente a US$ 7,8 mil. Para automóveis desse tipo, 26 cidades chinesas, entre elas Pequim e Xangai, concedem um subsídio de US$ 8,8 mil. Em Israel, Dinamarca e Portugal, além dos subsídios, os governos se comprometem a implementar redes de abastecimento com carregadores.
Hatch Ecológico
Nos Estados Unidos, rodar com o Leaf custa 4,5 vezes menos do que se gasta com carro a gasolina. Com a vantagem de não poluir
O MANTRA ATUAL
“Vamos massificar a tecnologia dos carros limpos e silenciosos com oito modelos diferentes”
Nesses três países, para quem quiser ir ainda mais longe com carros a bateria, haverá centros preparados para efetuar a troca de baterias em cerca de 90 segundos. Esses centros serão tocados pela Better Place, uma empresa que pretende revolucionar a mobilidade no mundo, fundada por Shai Agassi, um empresário israelense de 41 anos. Ghosn ficou sabendo da existência do projeto de Agassi em 2006, durante o Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, por intermédio de Shimon Peres, o veterano político israelense.
Dirigente de um país cercado de produtores de petróleo hostis, como o Irã, Peres tornou-se um defensor de uma nova solução para mover a frota de automóveis israelense, menos dependente do combustível. Em Davos, contou a Ghosn que faltava à Better Place achar um parceiro que topasse construir carros com design adaptado para facilitar a operação de troca de bateria. A peça, o coração do carro elétrico, pesa cerca de 215 quilos e precisa ser extraída e recolocada com uma espécie de grua. Assim, um Renault Fluence, com estilo similar ao que será lançado no mercado brasileiro, mas movido a baterias, será o primeiro modelo concebido para as estações de troca rápida propostas por Agassi. Com 4,82 metros de comprimento e autonomia similar à do Leaf, de 165 quilômetros, ele foi desenhado sob medida para que a substituição da bateria aconteça rapidamente. Mais tarde virá um furgão. Para começar serão 100 mil veículos, todos produzidos pela Renault-Nissan.
Foram fechados acordos para implantar estações de recarga em Israel, na Dinamarca e em Portugal, que deverão entrar em operação já em 2011. Os governos entram com subsídios e facilitam a instalação de pontos de recarga. Agassi espera chegar ao final de 2012 com 500 mil pontos de abastecimento em shopping centers, estacionamentos, residências e outros locais espalhados por três países, na Austrália, no Havaí e na região da baía de São Francisco, nos Estados Unidos. “Nosso modelo funciona de modo similar ao que das companhias de telefonia celular fazem com os minutos”, diz Agassi. “A diferença é que os clientes que usarem nossa infraestrutura de energia para reabastecer seus carros pagarão mensalmente em uma conta.” Os consumidores comprarão ou alugarão modelos da Renault ou da Nissan e comprarão a energia da Better Place. Quanto mais rodarem, menos custará o quilômetro.
Um conceito caro a Ghosn é a ênfase em produtos. “Para uma empresa não existem problemas que bons produtos não resolvam”, diz. Junto com o pacotaço de medidas que deram um eletrochoque que reanimou a Nissan, a partir de 1999, foi contratado um novo diretor de design, Shiro Nakamura. Caberia a ele coordenar o lançamento de 22 novos modelos, entre eles os crossovers Murano e Qashqai, o compacto March, o sedã Altima e o esportivo 350Z, que ajudaram a dar um ar moderno ao estilo da Nissan.
Produzida na Índia, Tailândia, México e, futuramente, no Brasil, a nova geração do March tem boas chances de ser o carro de entrada em mercados nos quais a Nissan precisa crescer, como no Brasil. Ghosn ainda não conseguiu cumprir a meta de conquistar 10% do nosso mercado. Até o final de outubro deste ano, as duas marcas ocupavam a quinta posição no país, com cerca de 140 mil carros vendidos. Mesmo somadas, estão emparelhadas com concorrentes como Peugeot-Citroën e Honda. É pouco para as ambições de Ghosn, que decretou uma ofensiva para o lançamento de novos modelos nos próximos meses. “Em um mercado concorrido como o brasileiro não dá para relaxar um único dia”, diz Jean-Michel Jalinier, presidente da Renault para o Mercosul. Até 2013, será investido R$ 1 bilhão para alavancar as vendas. Devem chegar ao país o Duster, um utilitário esportivo que receberá o logotipo da Renault, e o sedã Fluence.
Do lado da Nissan, o produto escolhido para turbinar as vendas será o compacto March. Ele tem o tamanho de um Fiat Uno e chegará vindo do México, com uma versão de entrada equipada com motor 1.0 flex. “Será o primeiro carro popular japonês lançado no Brasil”, diz o francês Christian Meunier, presidente da Nissan do Brasil. A marca japonesa aposta também no sedã Tiida, produzido em Curitiba. Caberá à dupla (principalmente ao March) fazer a marca chegar até o fim de 2011 com cerca de 20 mil carros vendidos. Ou seja, quase o dobro de hoje. “O mercado brasileiro é muito competitivo. Pode ser que ainda não sejamos encarados pelos brasileiros como um fabricante nacional”, diz Ghosn. “Sinal de que precisamos reforçar nossa operação com mais talentos no marketing, na comunicação e ter mais fornecedores locais.”
No mundo dos carros elétricos, enquanto as montadoras tradicionais marcaram passo, outros personagens entraram. Pioneira dos modelos desse tipo, com seu Roadster, a americana Tesla acertou uma parceria com a Toyota para produzir seus modelos numa linha de montagem que os japoneses mantêm na Califórnia, a Nummi. Entre as próximas atrações está o Tesla S, um sedã que deverá custar US$ 50 mil. Na Europa, a nanica da moda é a Bolloré, empresa do bilionário Vincent Bolloré, um dos 11 homens mais ricos da França. Produtor de baterias de polímero de lítio, Bolloré fez uma parceria com a Pininfarina, o estúdio italiano conhecido por construir dez entre dez Ferrari. Objetivo: fazer o Bluecar, um elétrico com três lugares para uso urbano, com autonomia para 309 quilômetros. Deverá ser alugado pelo equivalente a R$ 700 ao mês. “Já temos 8 mil interessados em aderir a nosso carro”, disse Bolloré a Época NEGÓCIOS.
O fato é que até 2013 pouco mais de 20 modelos elétricos deverão ser lançados no mundo. Montadoras como a Volkswagen, que até há pouco tempo não consideravam tão urgente estar nesse segmento, mudaram radicalmente de ideia e estratégia. Os alemães engajaram em seu projeto Martin Eberhart, ex-diretor da Tesla, um dos grandes especialistas em carros elétricos. Preparam-se para lançar três produtos que farão em massa, entre eles as versões do Golf e do Jetta e um compacto, o E-Up. “Queremos ser a montadora que massificará os carros elétricos”, desafia Martin Winterkorn, o presidente-executivo da Volkswagen.
No mundo dos elétricos, a Nissan terá de competir com indústrias
menores, ágeis e inovadoras, como a americana
Tesla e a francesa Bolloré
LIDERANÇA
A questão é que Winterkorn largou atrás nesta corrida, e só lançará seus primeiros carros em 2013. Até lá, Ghosn deverá ter colocado meio milhão de veículos com propulsão elétrica para rodar pelo mundo. “Serão oito modelos entre as marcas Infiniti, Nissan e Renault”, diz Tavares, vice-presidente da Nissan para as Américas. Em 2020, estimando-se uma produção global em torno dos 70 milhões de carros anuais, a fatia imaginada por Ghosn para os automóveis com zero de emissão e de ruído seria o equivalente a uma frota de 7 milhões. É quase o triplo do que a Renault fabrica hoje, um tamanho comparável ao da Toyota, a maior montadora do planeta. Há 13 anos, quando foi lançado, o carro híbrido Prius vendeu 2,1 milhões de unidades pelo mundo afora, jogou no colo da Toyota a bandeira de empresa inovadora e ajudou a conquistar clientes. Com o Leaf e os outros sete carros elétricos da sua ofensiva ecológica, Carlos Ghosn acha que pode assumir essa liderança inovadora. Se der certo, como aconteceu com a reestruturação da Nissan, será sua segunda grande proeza no mundo dos automóveis.
CIDADÃO DO MUNDO
Para dar conta de uma agenda atribulada, Ghosn usa um jato executivo e tem seu tempo gerenciado por uma chefe de gabinete que fica em Tóquio. Por suas longas jornadas de trabalho, foi apelidado de Seven-Eleven (das 7h da manhã às 11h da noite). Mas ele afirma que não abre mão de momentos com a família e nunca leva trabalho para casa
De Rondônia para o Japão
1954_No dia 9 de março, Carlos Ghosn nasce em Guajará-mirim, na fronteira de Rondônia com a Bolívia, filho de pai brasileiro de origem libanesa, e mãe libanesa. É o segundo dos quatro filhos do casal
1960_Muda-se com a mãe para Beirute (Líbano). Aprende árabe e francês, além do português
1978_Recém-formado engenheiro, é admitido como trainee na fabricante de pneus Michelin. Os gestores procuravam um funcionário com português fluente
1985_Aos 31 anos, vem para o Brasil como chefe de operações do braço sul-americano da Michelin
1990_Torna-se CEO da Michelin nos Estados Unidos
1996_É contratado como diretor de operações, pesquisa e compras da Renault, então às voltas com prejuízos. Meta: cortar US$ 3,6 bilhões em gastos
1997_A Renault encerra as operações de uma fábrica na Bélgica e 3,3 mil funcionários são demitidos. Ghosn ganha a alcunha de Le Cost Killer (o matador de custos)
1998_Também encarregado das operações no Mercosul, Ghosn inaugura a fábrica de Curitiba, a primeira nova planta da Renault em 15 anos
1999_No dia 27 de março, a Renault injeta US$ 5,4 milhões na Nissan e evita sua quebra. Em julho, Ghosn vai para Tóquio liderar o salvamento da parceira. Três meses depois, anuncia o fechamento de cinco fábricas e o corte de 21 mil trabalhadores
2000_Sob suas ordens, a Nissan vende participação em outras companhias, corta 20% dos custos e reduz drasticamente sua dívida de US$ 19,4 bilhões
2001_A Nissan volta a ganhar dinheiro e inaugura uma nova fábrica em Canton, no Mississippi (EUA)
2005_Ghosn é eleito presidente da francesa Renault. Lança o Plano 2009, com metas de alcançar 6% de margem de lucro e venda de 800 mil carros a mais
2006_Em seis meses, ocorrem três suicídios no centro de tecnologia da Renault, em Guyancourt, na França. Os sindicatos alegam excesso de pressão profissional. Ghosn muda a gestão do centro
2008_Assinada parceria com a indiana Bajaj para fazer um veículo ultrabarato, em torno de US$ 3 mil. A Renault compra 25% da russa Avtovaz. Com a crise, a intenção é apostar nos emergentes
2009_Nos Salões do Automóvel de Tóquio e de Frankfurt, Ghosn revela oito protótipos de carros elétricos das marcas Renault, Nissan e Infiniti
2010_Faz parceria com a alemã Daimler, que cede ações e vira acionista da Renault-Nissan. A Nissan lança o elétrico Leaf no Japão e nos Estados Unidos, um carro feito em série com preço mais acessível
“Começou uma revolução”
Experimente perguntar a Carlos Ghosn qual foi seu maior feito na indústria automobilística e a resposta sairá rápido: a reconstrução da Nissan. “Nada é comparável”, diz. “Mas no futuro talvez sejam os carros elétricos. Isso pode significar uma revolução.” Abaixo, trechos da entrevista a Época NEGÓCIOS
Muitos fabricantes já tentaram fazer carros a bateria. Por que o senhor acha que o Nissan Leaf será um sucesso?_Antes faltava aos carros elétricos um preço acessível e uma bateria com autonomia razoável. Com capacidade para rodar 165 quilômetros, a que equipa o Leaf garante uma mobilidade aceitável. Nos Estados Unidos, 90% das pessoas rodam menos de 160 quilômetros por dia. Vendido a US$ 20.280 em estados americanos como a Califórnia, ele é um produto que pode ser comprado por muita gente. É o primeiro carro ecológico popular. Ter um automóvel com emissão zero a esse preço pode significar uma revolução.
Como está a procura pelo Leaf nos mercados em que já foi lançado?_Nos Estados Unidos e no Japão a resposta do consumidor foi maciça e positiva. Em setembro cumprimos metas de 20 mil reservas, que deveriam ser atingidas em 12 meses. Ou seja, lançaremos o carro com sua produção toda vendida.
Quando os elétricos andarão sem subsídios?_A tecnologia elétrica não é cara do ponto de vista da engenharia. Mas vai competir com outra extremamente popular. A cada ano, saem das fábricas entre 60 e 70 milhões de automóveis com motor a combustão. Quando vendermos entre 500 mil e 1 milhão de automóveis a bateria, ele ficará competitivo. No momento, o problema é a bateria, ainda cara demais. Até que seja atingida uma escala mínima, a ajuda dos governos será necessária. Mas nenhum outro construtor tem capacidade para fazer meio milhão de automóveis elétricos e meio milhão de baterias. Lançaremos oito modelos.
A Renault-Nissan perdeu o bonde dos híbridos?_Quando a Toyota entrou nessa, a Nissan estava atrasada em tudo, não só nos híbridos. Enquanto a Toyota era uma montadora lucrativa, a Nissan perdia dinheiro. Precisava sobreviver. Já na Renault, o foco na Europa, onde concentrava suas vendas, era o motor a diesel. Em 2006, decidimos fazer carros híbridos. Conseguimos um bom produto, o Infiniti M35. Mas a Toyota assumiu a liderança. Nos elétricos, decidimos sair na frente. Seremos o primeiro grupo a popularizar o carro elétrico.
A Renault e a Nissan conquistaram mercado no mundo. Mas nunca atingiram a marca de 10% do mercado planejada para o Brasil. O que falta?_Temos uma estratégia ambiciosa para o país. A meta é avançar no mercado interno. Mas a batalha nos grandes países emergentes, como a China, a Índia e a Rússia, é mais aberta. Há muitas décadas existem no Brasil grandes montadoras com presença global. Os consumidores têm uma imagem preconcebida e fica mais difícil para quem está chegando conquistar mercados. Nos outros países entramos de igual para igual com as outras. Aqui temos de recuperar terreno.
Como reverter essa situação?_ Para começar, lançando produtos. No ano que vem, chegará o Renault Duster, um novo utilitário esportivo, com preço competitivo. O Clio é um carro popular que pode crescer em vendas. Haverá o Nissan March, um compacto com linhas modernas. Quero evitar depender de um carro só. Hoje, o hatch Sandero, da Renault, concentra 55% das vendas do nosso grupo no país. Isso é perigoso. Apesar de produzirmos automóveis no Paraná há mais de uma década, pode ser que não sejamos encarados ainda como um fabricante local. Sinal de que precisamos reforçar nossas empresas com mais talentos brasileiros no marketing, na comunicação, ter mais fornecedores locais.
Há planos de lançar um carro elétrico no país em parceria com o empresário Eike Batista?_Estamos abertos a conversar sobre parcerias. A Renault estabeleceu relações com a japonesa Nissan, com a coreana Samsung, com a russa Lada, com a indiana Bajaj. Temos grande experiência em parcerias. Se há interesse de uma pessoa séria de fazer uma tecnologia nova, estamos abertos.
“Com impostos tão altos, o Brasil não é um país barato para a produção.
Nossa fábrica só produz para o mercado interno.
Exportar não é competitivo”
A Renault mantém uma parceria com a indiana Bajaj para fazer um carro ultrabarato, para ser vendido a US$ 3 mil. Existem planos de fazer isso no Brasil?_Oferecer carros baratos é uma meta. Mas nunca será possível praticar um preço desses no mercado brasileiro. O governo tributa os carros como nenhum outro faz no mundo. O Logan brasileiro é vendido duas vezes mais caro do que na Romênia. Obtemos mais lucro com esse automóvel lá do que no Brasil. Aqui os impostos são muito altos.
Por que o senhor conseguiu cumprir suas metas na Nissan, mas não foi tão bem-sucedido com os objetivos da Renault?_Não fosse a crise, teríamos conseguido os 6% de margem de lucro. Já a venda de 800 mil carros a mais seria complexo. Provavelmente não chegaríamos nela.
Como agir em períodos de crise?_Nas crises, as decisões têm de ser tomadas logo. Quando eclodiu a atual turbulência, nomeei dois executivos para acompanhar a situação diariamente. Um cuida da Nissan e da Infiniti; outro da Renault, da Dacia e da Samsung. Em situações de emergência, deve-se agir o quanto antes, na linha de frente da operação. A atenção com custos exige ação. A prioridade era manter o fluxo de caixa. Depois houve gestão: atrasamos projetos e fizemos cortes. Aí deu para manter outras prioridades: os carros elétricos e os investimentos nos emergentes.
Um operário europeu ganha R$ 60 por hora e um marroquino, um sexto disso. Dá para continuar fabricando carros em países desenvolvidos?_Produtos mais populares serão uma missão para países emergentes. A Renault produz o Logan na Romênia e faz o Laguna e o Mégane na França. O ideal é haver uma repartição de papéis.
E no Brasil?_Com os impostos, o Brasil não é um país barato. Não é tão caro quanto a Europa, mas não tem os custos do México. Nossa linha no Paraná está orientada a produzir para o mercado interno. Exportar não é competitivo.
Qual foi seu maior desafio na indústria automobilística?_Sem nenhuma dúvida, comandar o renascimento da Nissan. Muitos me comparam ao Lee Iacocca. Ele estava no país dele, com a cultura dele, com a língua dele. Eu estava no Japão, com a missão de transformar uma empresa grande, complexa. Acho que nada é comparável. Talvez no futuro sejam os carros elétricos. Mas até agora nada na minha carreira se compara ao fato de eu ser estrangeiro e fazer o processo de renascimento da Nissan.