Pouca gente além do biólogo Roger Payne, 75, pode dizer que sua obra já ultrapassou o Sistema Solar.

Ocorre que os cantos de machos de baleia-jubarte gravados por Payne estão no célebre Disco de Ouro, um registro de sons da Terra enviados para o espaço com as sondas Voyager, da Nasa. Ele é um dos pioneiros no estudo da comunicação entre os animais.

Payne falou com a Folha em Agadir (Marrocos), onde ocorreu, na semana passada, a reunião da CIB (Comissão Internacional da Baleia).

Veterano das reuniões da CIB, comemorou o fato de que um acordo para trazer de volta a caça comercial não tenha passado. Criticou duramente a indústria baleeira japonesa, dizendo que a história julgará o país por seu apego a um modelo predatório.

Leia a seguir a íntegra da entrevista:

FOLHA – Como foi seu o pioneirismo na área da identificação de baleias, seja visualmente, seja pelo canto?

*ROGER PAYNE – * Bem, nós aprendemos a distingui-las com base em marcas naturais individuais. Começamos com baleias-francas e, mais tarde, um dos membros do meu grupo se juntou a outra equipe de pesquisa e a aplicou a ideia às caudas de baleias-jubartes. Achou que isso era fácil demais e fez a mesma coisa com baleias-minkes. Mas, na Costa Oeste dos EUA, Jim Darling mostrou praticamente ao mesmo tempo que nós que a identificação individual era possível com baleias-cinzentas. A diferença é que o nosso trabalho com baleias-francas é contínuo, nunca parou, de forma que temos um registro contínuo desde o primeiro ano. Mas dividimos a honra de ser os primeiros com Jim. O trabalho que fazemos na Argentina com as baleias-francas é o mais longo programa com baleias baseado em reconhecimento individual, tendo começado em 1970.

Isso permite traçar as genealogias dos animais, por exemplo?

Dá para traçar linhagens maternas. Nós não sabemos quem é o pai, e eu suspeito que o pai não sabe quem é o pai (risos), porque a espécie é totalmente promíscua.

E quanto ao canto das jubartes?

Nesse caso, eu não fui o primeiro. A Marinha americana já gravava esses cantos 18 anos antes de mim. Eles só não sabiam que o canto vinha de jubartes, embora imaginassem isso nós provamos a origem dos sons. De novo, a honra nesse caso é dividida com Scott McVay, que mostrou que os sons compridos e complicados das jubartes se repete e é rítmico, o que faz deles, por definição, canções.

As suas gravações hoje estão nas sondas Voyager que deixaram o Sistema Solar, certo?

Sim. O que acontece é que eu conhecia Carl Sagan, ele trabalhava na Universidade Cornell quando eu também estava por lá, e ele foi o responsável pelos discos de ouro que agora estão num lugar cuja distância não me lembro, mas que tem uma definição ótima: é onde “o vento [de partículas] do Sol se iguala ao vento das estrelas”. Foi totalmente ideia do Carl. Ele ouviu o canto das baleias creio que durante uma palestra que fiz e disse “ah, vamos precisar disso”. Ele me pediu as gravações e eu disse sim, claro.

Décadas depois, o que o sr. acha que se pode dizer com segurança sobre o papel do canto entre as baleias, sua complexidade perto de outros chamados de animais e da linguagem humana?

Essas são questões importantíssimas. Mas, ai de nós, ainda sofremos de uma completa ignorância em relação a elas. Vou lhe mostrar como as coisas ainda estão num nível absolutamente básico. Nós agora sabemos que as outras baleias ouvem esses sons puxa, isso é fantástico (risos). Sabemos que os chamados, as canções repelem outras baleias. É como o canto das aves. Dois pássaros não ficam ali gorjeando alegremente um do lado do outro, eles estão brigando.

Na verdade eles estão dizendo “esse é o meu território”, “essa aí é a minha fêmea”.

Exato. Então, parece que eles estão defendendo a água em torno de si, mas a água em torno deles nem sempre é a mesma, pode ser essa baía aqui em certo dia, aquela outra área lá mais tarde. Mas ainda não dá para saber se o propósito principal é repelir outros machos, atrair fêmeas ou as duas coisas. Eu suspeito que seja as duas coisas, porque é assim que funciona o canto dos pássaros. Só os machos de jubartes cantam. Há algumas observações de que, às vezes, outra baleia se junta ao cantor, e então ele para de cantar. E os dois ficam juntos sem interações violentas. Essa é a grande esperança de demonstrar que se trata de uma fêmea sendo atraída.

É possível que, tal como os golfinhos, eles possuam um canto “assinado”, único para cada indivíduo?

Isso seria maravilhoso de estudar, mas ainda não foi provado. É claro que eu ficaria muito surpreso se as baleias não conseguissem saber quem é quem entre elas (risos).

Como o senhor vê o futuro da CIB, depois das duras negociações da semana passada?

Não sei se você se lembra do Spiro Agnew, aquele vice do [ex-presidente americano Richard] Nixon que acabou sofrendo um impeachment por ter sido corrupto só um pouquinho corrupto, veja bem (risos). Perguntaram a um sindicalista americano sobre Agnew e ele respondeu: “Bem, é o único vice-presidente que temos, não é?”. A CIB é a mesma coisa. Ela conseguiu uma realização extraordinária ao evitar extinções com a moratória à caça comercial. Mas trata-se de um organismo totalmente corrupto, que precisa ser reformado.

Tentar criar algo que fosse um consenso foi uma ideia nobre, mas que só pode ser explicada por inexperiência, vinda de gente que não estava por aqui nos últimos 30 anos. É como dizer “olhe, vou aqui falar com os israelenses e os palestinos, vai ser uma decisão por consenso, vai dar certo, você vai ver”. Não dá. Há visões tão diferentes que não se pode resolver as coisas por negociação.

O que acha quando o Japão diz que há bons argumentos científicos em favor de uma captura limitada de baleias de certas espécies?

Bem, a ciência que eles citam provavelmente é bastante boa. Mas a ciência que o Japão está fazendo [na suposta caça científica japonesa] é totalmente irrelevante para determinar esse limite de captura, e é obviamente apenas um manto muito tênue, uma desculpa, para manter a atividade baleeira. E o fato de eles usarem essa mesma desculpa por 24 anos é insuportável. Fico pensando “pelo amor de Deus, pessoal, parem com isso”.

Uma captura limitada certamente é possível. Eu não gostaria de vê-la, mas quem se importa com o que me agrada? Acho que você pode dizer que isso é viável desde que as pessoas responsáveis pela captura sejam absolutamente honestas, coletem os dados e realmente os compartilhem com os outros. Mas achar que eles farão isso diante de casos como o da toninha-de-dall, na qual há uma hecatombe e eles não divulgam os dados… eu tenho sérias dúvidas.

Como assim?

Quero dizer, por que você acreditaria que um país vá mudar de uma hora para outra e virar um troço maravilhoso, gentil, cheio de consideração, quando tudo o que andaram fazendo foi trapacear, mentir e encher a comissão de gente que foi comprada por eles?

Eu diria que, no futuro, a posição do Japão sobre a atividade baleeira nos dias de hoje vai ser considerada uma vergonha pelo julgamento da história, junto com outras grandes fontes de vergonha para um país. E, quando as pessoas entenderem a importância de outras espécies, a importância do que nós perdemos, vão acabar compreendendo o tamanho desse pecado. Eu e você não gostaríamos de ser os descendentes das pessoas que vêm do Japão para a reunião da comissão todos os anos.

Vamos deixar as coisas claras: eu adoro a cultura japonesa. O povo japonês é maravilhoso. Não tenho objeção nenhuma ao povo japonês, mas objeções enormes aos baleeiros deles, que são mentirosos e trapaceiros.

Ativistas como Junichi Saito, do Greenpeace do Japão, argumentam que é um problema generacional: quando a atual geração “baleeira” morrer, será o fim da caça no Japão, porque as gerações mais jovens estão mais interessadas em temas ambientais do que em comer baleias. O sr. acha que isso faz sentido?

Acho que faz todo o sentido, mas isso só vai acontecer se os baleeiros permitirem que o povo do Japão saiba o que realmente acontece em seu nome. O meu país, os EUA, faz coisas tão ilegais que você simplesmente balança a cabeça assombrado: “Como é que isso pode ser feito? Feito em meu nome, como americano?”. Isso acontece conosco e acontece com o Japão.

Não é bom quando a América mente para o mundo sobre o que está fazendo, sobre o Iraque, sabe, a tal da Operação Liberdade ou seja lá como se chama, quando ela está no Iraque por causa do petróleo, o que mais estaria fazendo lá? Não é bom quando o Japão mente para seu povo dizendo [faz voz impostada, em tom cômico]: “Estamos fazendo caça científica, todo mundo está sendo cruel conosco, é uma injustiça”.

É verdade que o sr. deu um Fusca de presente para o ambientalista brasileiro José Truda ir até a Argentina e colaborar com o seu trabalho com as baleias-francas nos anos 1970?

Sim, e era um bom Fusca aquele (risos). Na época, tínhamos basicamente de voar até a cidade onde José morava [Porto Alegre] e dirigir feito doidos até chegar ao nosso local de trabalho na Patagônia. Durante o resto do ano o carro ficava na garagem dele, e eu acabei dando o Fusca para o José em definitivo. Ele é um sujeito extraordinário, muito corajoso. Na época, também trabalhava com conservação de florestas, e chegava a prender pessoas pessoas que estavam praticando atividades ilegais e que estavam armadas, ao contrário dele. Sabe, até hoje eu pergunto: “José, cadê meu carro?” (risos).

A situação dos grandes cetáceos hoje no mundo pode ser considerada como de recuperação lenta da população, em linhas gerais?

Bem, tem havido a recuperação de algumas espécies. Os principais casos são os da baleia-franca no hemisfério Sul e da jubarte no mundo todo. A população da baleia-franca-austral está aumentando mais rápido do que qualquer um imaginaria que uma população de baleia fosse capaz de crescer. Essa é uma grande esperança.

Mas deixe-me voltar à situação geral desses encontros da CIB. Um dos principais argumentos em defesa do acordo que acabou não sendo aprovado [o qual liberaria a caça comercial de forma limitada] era o seguinte: “Se o acordo não passar, a CIB vai entrar em colapso”. E isso é besteira completa. Não há nenhuma outra organização do mundo que permitiria que os japoneses caçassem baleias.

Tanto o Japão quanto os outros baleeiros [Noruega e Islândia]. Eles nunca perderam nas negociações. Têm controle total sobre o que capturam, e ninguém é capaz de impedi-los. A ideia de que eles abandonariam a CIB justamente quando são os campeões invictos… claro que não!

A única coisa que fará a atividade baleeira parar é quando acabarem as chances de ela ser lucrativa. E o Japão se lembra muito bem de quando a caça industrial era comum os anos 1950, digamos, e de como ela era a atividade pesqueira mais lucrativa do mundo. Nada chegava perto havia a caça à baleia e depois, lá embaixo, a pesca do atum ou do peixe-espada. Então o que eles querem é deixar a coisa rolando, mantendo as habilidades, o maquinário e o conhecimento em atividade, até que eles consigam voltar à caça industrial. E, quando voltarem, vamos ver: será que vão ser obedientes à lei e não vão trapacear? É claro que não.

Sabe qual é a definição de loucura? É fazer a mesma coisa várias e várias vezes e esperar um resultado diferente. Então, é loucura dar cotas de caça a essa gente e esperar que eles ajam de maneira diferente. Aliás, desde antes de você nascer, os japoneses têm ameaçado deixar a CIB. A minha reação é [simula um bocejo]: “Ah, vão sair? OK, boa sorte”.

Se a caça já foi tão lucrativa, será que ela pode se tornar um grande negócio de novo se os japoneses voltarem a ele se e quando as populações de baleias voltarem a níveis altos?

Nunca vai ser tão lucrativo de novo, porque no passado eles não estavam caçando baleias, estavam minerando baleias estavam destruindo o recurso. Dá para ganhar milhões de dólares fazendo isso por um tempinho curto. E aí a coisa para.

Veja, por exemplo, o que está acontecendo com o atum. A Mitsubishi está congelando e guardando atum-azul porque [finge voz conspiratória] “quando o bicho estiver extinto, isso vai valer uma fortuna!”. E você pensa: “Hein?”. Mas eles praticamente admitiram isso, dizem que é um bom investimento.

O que o sr. acha da mística que existe em torno das baleias como “os animais mais inteligentes do mundo” e outras afirmações exageradas?

Bom, se elas não são os animais mais inteligentes do mundo, então nós somos, o que significa que talvez não seja tão bom ser inteligente (risos). Não é lá um grande elogio para uma baleia.

Como todos os outros cientistas, eu não sei para que elas usam aquele cérebro complicado, mas tendo a achar que ele tem bastante a ver com processamento de sinais. Se eu der um berro aqui e escutar o eco, o máximo que vou conseguir é imaginar, com base no som, que estamos num lugar fechado e bastante amplo. Já a baleia vai saber o número de pilares, as pessoas se mexendo, esse tipo de coisa.

Acho que isso tem a ver com o cérebro grande, porque é necessário um excelente computador para processar toda essa informação.

E, claro, também há o lado social. A sociabilidade exige que você fique o tempo todo tentando detectar trapaceiros, tentando entender motivações para ser não passado para trás. Então, não é surpreendente que primatas como nós, baleias e elefantes, todos vivendo em sociedades complicadas, tenham esses cérebros complexos.

FSP